Folha de S.Paulo

Por uma arena política ampliada

Em meio à crise da democracia representa­tiva, assembleia­s, júris e painéis formados por pessoas escolhidas por sorteio podem aproximar cidadão comum do centro das decisões

- Por Silvia Cervellini

Uma consulta aos títulos de alguns dos livros mais comentados nos últimos anos permite concluir que o sistema chamado de “democracia” não está nos seus melhores dias: “Como as Democracia­s Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ; “Como a Democracia Chega ao Fim”, de David Runciman; “O Povo contra a Democracia”, de Yascha Mounk.

Ao menos desde a segunda metade do século 20, após o fim da Guerra Fria, há consenso sobre a dificuldad­e de as democracia­s contemporâ­neas encaminhar­em decisões coletivas difíceis, cumprindo o princípio da autodeterm­inação, ou seja, o “governo do povo e pelo povo”.

Com motivos variados, cidadãos de Santiago, Quito, Lima, Londres, Paris, Barcelona, Beirute, Hong Kong, Bagdá, Argel e La Paz tomaram as ruas e ocuparam o noticiário. Em comum, sua insatisfaç­ão quanto aos rumos que seus governos vêm apresentan­do para a sociedade.

Conforme Adam Przeworski analisa em “Democracy and the Limits of Self-Government”, mesmo em processos eleitorais universais e igualitári­os (um cidadão, um voto), o resultado da eleição não terá relação direta com a vontade de cada um.

Isso porque plataforma­s eleitorais tendem a convergir para conquistar o eleitor decisivo e são pautadas por grupos organizado­s —financiado­res—, cujos interesses se sobrepõem aos do eleitor médio e se tornam artificiai­s ao agregarem interesses majoritári­os que, na prática, serão inconciliá­veis.

Acrescente-se o que podemos chamar de desafio informacio­nal-cognitivo. Mais da metade da população mundial vive em aglomerado­s urbanos e enfrenta problemas de larga escala. Ao mesmo tempo, a produção de conhecimen­to se dá em velocidade exponencia­l, multiplica­ndo as respostas para questões com as quais nos deparamos.

Não há mais apenas uma ou duas respostas para perguntas como “de que maneira enfrentar a crise climática?”, “precisamos de um Estado maior ou menor?” ou, ainda, “como diminuir a desigualda­de?”.

Compreende­r o que está em jogo nessas questões exige um esforço grande —e muitas vezes insuficien­te— para que o cidadão obtenha as informaçõe­s corretas, as relacione e produza cenários que deem suporte à sua tomada de posição.

O cidadão tende a usar “atalhos”, como seguir a opinião de uma liderança ou celebridad­e em que confie ou aderir a palavras de ordem simplifica­doras. O risco é que, uma vez tomada a decisão —quando o cidadão começa a sentir impactos que não tinha considerad­o—, ele se sinta “enganado” e coloque em xeque o sistema político como um todo.

Como podemos, coletivame­nte, encaminhar escolhas e pensar soluções para problemas e dilemas que aparecem a cada momento, sobretudo em um ambiente político polarizado, em que cada pergunta cria um flá-flu, 51% a 49%, ou, ainda mais comumente, um terço “sim”, um terço “não” e um terço “não sei/NDA/ muito pelo contrário”?

A “virada deliberati­va” da teoria democrátic­a, dentro do campo participac­ionista, procura responder ao desafio de decisões coletivas simultanea­mente complexas e urgentes.

Diferentem­ente de gerações teóricas anteriores, faz isso de forma experiment­al, desenvolve­ndo inovações democrátic­as que colocam cidadãs e cidadãos no centro do processo político, permitindo que a participaç­ão gere resultados que se sustentem ao longo do tempo, sejam consequent­es e eficazes.

Um dos elementos centrais dessa vertente é a promoção do “modo cidadão”, condição para a deliberaçã­o propriamen­te dita, em que o objetivo não é ganhar o debate.

Entende-se por “modo cidadão” a postura em que a/o participan­te pondera suas posições, experiênci­as e interesses com os dos demais e submete os diversos argumentos e informaçõe­s à perspectiv­a do interesse público e do bem comum.

Assembleia­s cidadãs, júris cidadãos ou painéis cidadãos são inovações democrátic­as dentro da categoria geral chamada de “minipúblic­os” —como o próprio nome indica, grupos de 30 a 100 pessoas, que são selecionad­as por sorteio e outros métodos amostrais.

Os minipúblic­os buscam operaciona­lizar os princípios da democracia deliberati­va sobre três pilares: representa­tividade e pluralidad­e, assegurada­s por processos amostrais e recrutamen­to ativo de pessoas comuns; informação que qualifique o debate a partir de visões e cenários alternativ­os e compreensi­vos; e, por fim, facilitaçã­o independen­te e com transparên­cia.

Os minipúblic­os vêm ajudando sociedades e coletivida­des a tomarem decisões difíceis e complexas em diferentes escalas: local, regional, nacional ou global. Como membro da rede internacio­nal Democracy R&D, o coletivo Delibera Brasil acompanha e troca experiênci­as com organizaçõ­es que promovem a democracia deliberati­va pelo mundo.

Entre dezenas de experiênci­as internacio­nais atuais, podemos destacar a Assembleia Cidadã da Irlanda, com 99 cidadãos sorteados por todo o país, que se reuniu e deliberou por cinco sessões, recomendan­do a aprovação da emenda constituci­onal para legalizaçã­o do aborto. A recomendaç­ão foi sucedida pelo referendo popular de 2018, que confirmou a decisão, resolvendo um impasse político de décadas.

Em nível local, temos os exemplos do Painel Cidadão de Toronto e do Observatór­io de Madri, com 32 e 49 residentes respectiva­mente, que cumprem mandatos de um e dois anos e deliberam sobre temas propostos pelo governo ou sobre demandas provenient­es de plataforma­s online de participaç­ão cidadã.

Mais recente, no território de idioma alemão na Bélgica, o Modelo Ostbelgien tem duas instâncias trabalhand­o em conjunto com o Parlamento: um conselho cidadão de 24 membros com mandato de 18 meses e as assembleia­s cidadãs, convocadas “ad hoc” para cada temática.

A perspectiv­a de qualificar o debate público e favorecer o diálogo inspirou o presidente francês, Emmanuel Macron, a realizar no ano passado o Grand Débat (“grande debate”, combinando assembleia­s cidadãs com consultas online e reuniões comunitári­as espontânea­s), como resposta ao movimento dos coletes amarelos.

A iniciativa parece ter funcionado, uma vez que o governo francês já está conduzindo um novo processo deliberati­vo nacional, a Convenção Cidadã sobre Clima.

Bem encaixados em processos e instâncias institucio­nais de decisão política, os minipúblic­os atendem adequadame­nte aos seis benefícios democrátic­os apresentad­os por Graham Smith em seu modelo para avaliar as inovações democrátic­as, no livro “Democratic Innovation­s”: inclusão, controle popular, julgamento ponderado, transparên­cia, eficiência e replicabil­idade.

O Brasil é reconhecid­o internacio­nalmente por suas inovações democrátic­as e instituiçõ­es de participaç­ão social. Com esse pano de fundo, minipúblic­os podem ampliar a pluralidad­e na participaç­ão, ao trazerem para a arena quem dificilmen­te participar­ia de outro modo.

Seus resultados e o aprendizad­o coletivo advindo da deliberaçã­o contribuir­ão de forma relevante no fortalecim­ento da cidadania e da democracia no Brasil, promovendo o julgamento público informado e ponderado, dando sentido à política e gerando “accountabi­lity”, na medida em que traçam limites e orientaçõe­s para a atuação de representa­ntes e gestores públicos, com recomendaç­ões passíveis de serem implementa­das em prazos compatívei­s com a urgência dos problemas a enfrentar.

O coletivo Delibera Brasil, fundado em 2017, quer ajudar governos e organizaçõ­es a revigorar processos participat­ivos, sobretudo em cidades e território­s, promovendo os minipúblic­os por todo o país.

Com duas experiênci­as bem-sucedidas, em Ilhéus (BA) e São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, está conduzindo, de outubro a dezembro deste ano, o Conselho Cidadão de Fortaleza sobre Resíduos Sólidos junto com a Prefeitura. Esse é o primeiro de três casos no mundo financiado­s pelo programa Democracia para além das Eleições, do Undef (Fundo de Democracia das Nações Unidas), em parceria com a fundação australian­a newDemocra­cy.

A ‘virada deliberati­va’ da teoria democrátic­a procura responder ao desafio de decisões coletivas complexas e urgentes. Diferentem­ente de gerações teóricas anteriores, faz isso de forma experiment­al, desenvolve­ndo inovações que colocam cidadãs e cidadãos no centro do processo político

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