Exageros e cara de improviso marcam ópera de Kanye West
los angeles Qual é a única forma de arte vasta o suficiente para conter a grandiosidade de Kanye West, suas queixas e causas, sua religiosidade e o talento para o design que ele proclama ter? Será que já houve alguém tão operístico?
Mas ser uma pessoa operística não significa ser capaz de criar uma boa ópera. E “Nebuchadnezzar”, a passional e intrigante obra que West definiu como ópera —anunciada em 17 de novembro e encenada no Hollywood Bowl apenas sete dias mais tarde— não era realmente uma ópera, e tampouco era realmente boa.
O trabalho é uma declaração ruidosa da fé cristã que West reencontrou este ano. Sentado na lateral do palco e falando com urgência inflamada, ele lia trechos do “Livro de Daniel”, da Bíblia —sobre um rei louco que encontra Deus—, enquanto um enorme coral se movia pelo palco cantando frases em latim.
O coral é o Sunday Service, grupo com que West vem se apresentando em performances em estilo de igreja, desde janeiro. O grupo também participou do nono álbum de West, “Jesus Is King”, e tem posição central em seu novo trabalho, intitulado “Jesus Is Born”, que sairá, sim, no Natal.
O Sunday Service ruge de um modo purificador. E West claramente estava em busca de purificação depois de um período tumultuado de show cancelados, vício em opiáceos, hospitalização por doença mental, apoio público ao presidente Trump, que enfureceu boa parte do país, e declarações incoerentes sobre a escravatura, que enfureceram praticamente todo mundo.
“Nebuchadnezzar”, uma peça de 56 minutos de duração, começou com pouco mais de duas horas de atraso, com o coral enchendo o palco e cantando, enquanto uma figura em azul brilhante se contorcia e gritava no meio deles. A figura representava Nabucodonosor, rei babilônio que, de acordo com a Bíblia, conquistou os judeus e alistou alguns deles como servos.
Um desses servos, Daniel, interpretava os sonhos do rei, entre os quais uma visão de Nabucodonosor vagueando durante sete anos por terras inóspitas. Depois de cumprir esse período de insanidade, o rei retornava repleto de um novo espírito de modéstia, glorificando a Deus.
Havia algo de intrigante na opção de West por fazer com que Nabucodonosor, interpretado pelo jovem rapper Sheck Wes —de “Mo Bamba”, sucesso viral do ano passado—, se expressasse principalmente por meio de gritos e grunhidos, uma visão de masculinidade tóxica tornada ininteligível.
Um solista homem parecia estar fazendo o papel de Daniel, ainda que, por algum motivo, também houvesse uma solista mulher cantando mais ou menos a mesma música — em geral, sem letra definida e repleta de firulas exageradamente operísticas, um pouco ao modo de Andrea Bocelli.
Não havia muitas letras, e era quase impossível distingui-la, da plateia. Uma musicóloga que assistiu à apresentação na internet disse no Twitter ter ouvido “lux aeterna” e “rex gloriae”, que são frases da missa do réquiem, e “animus deum”, que não é. A direção de palco, com exagero nos efeitos de fumaça, comandada pela artista performática Vanessa Beecroft, que colabora com
West há muito tempo, esclarecia as coisas apenas de maneira intermitente.
A apresentação teve cara de improvisada, o que não deixa de ter seu charme, mas, especialmente se considerarmos os preços de alguns ingressos, também foi decepcionante.
A sequência mais impressionante envolvia a estátua que Nabucodonosor manda construir e que seja cultuada. No caso, havia um ator sobre um grande pedestal, vestido de um tecido dourado, uma visão escultural móvel elegante e fantasmagórica, digna dos melhores trabalhos de Beecroft. Mas o palco em geral parecia atulhado e desajeitado, com batalhas encenadas e danças circulares que terminavam amontoadas.
Nada disso desqualificaria “Nebuchadnezzar” como ópera. Há óperas sem letras, óperas faladas, óperas confusas.
Mas o estilo direto de apresentação de “Nebuchadnezzar” —o domínio da narrativa simples, a falta de personagens reais, o conteúdo religioso— colocam a peça mais na categoria dos oratórios, como “Messias”, de Haendel.
Essa é certamente uma distinção acadêmica, mas sugere queWestestavamaisinteressadoemevocarosparamentosde uma ópera do que em dar forma dramática efetiva, expressa em música, a esse material fascinante. “Nebuchadnezzar” se satisfez em contar a história. A sensação era a de que tudo aquilo era apenas acessório para a leitura de West.
Por acaso, o primeiro sucesso duradouro de Giuseppe Verdi foi “Nabucco”, ópera que também fala de Nabucodonosor. Aquele trabalho dá estatura trágica ao rei louco, mas o mantém reconhecivelmente humano, traduzindo sua jornada de fé em emoção por meio de música. E era preciso que West oferecesse alguma conexão persuasiva entre a música e o teatro.
Hásementesdealgumacoisa na peça. Fica claro que West se vê na história. Mas ele não foi capazdetransformaressaidentificação em arte. Nessa altura da carreira, isso importa menos a West do que a oportunidade de ostentar, gritando trechos da Bíblia diante de milhares de pessoas, como um pregadorderuaemescalamaciça.