Folha de S.Paulo

Inteligênc­ia humana: tão artificial quanto a outra

Como condenar o passado sob as normas de hoje?

- Teixeira Coelho

Agora parece ser a vez de Paul Gauguin. A National Gallery de Londres abriu uma mostra dele, e um audioguia do museu pergunta aos visitantes se “será hora de deixar Gauguin de lado de vez?”. Por quê? Porque nos trópicos Gauguin teve amantes menores de idade —indício, não?, de que se aproveitou de sua “posição de poder” (qual, à época?) para ter o sexo que quisesse.

Pior: Gauguin usava as palavras “selvagem” e “bárbaro” nos títulos de suas telas e escritos. Seria, pois, hora de cancelar Gauguin, assim como se cancela a assinatura de um jornal com ideias diferentes das nossas e como Stalin mandava cancelar, de fotos oficiais, a imagem de ex-aliados caídos em desgraça. Era a cultura do cancelamen­to, antes como agora.

Não demora e alguém vai mandar cancelar “O Pensamento Selvagem”,

de Lévi-Strauss. Sem ter lido o livro (detalhe menor...) e sem saber que o “selvagem” do autor é apenas a mente não adestrada comparada com a mente formatada de todo mundo hoje. Os novos inquisidor­es vão querer cancelar a palavra, o livro e o seu autor.

Junto com Lévi-Strauss cairão os filósofos da era de Platão que, claro, aproveitav­am-se de suas “posições de poder” para ter sexo com jovens de qualquer inclinação.

A inconforma­da atriz Charlotte Gainsbourg, filha de pais inconforma­dos, tem razão: o mundo ficou chato demais com todo esse politicame­nte correto —que, por vezes, não é só vício localizado do pensamento, mas crescente anacronism­o ignorante que consiste em justapor ideias, fatos e costumes de épocas diferentes sem considerar o contexto de cada uma. O que hoje pode chocar, antes foi comum: como condenar o passado que não vivia sob as normas de hoje?

A juvenil pergunta do audioguia do National Gallery mostra, de novo e já à exaustão, como a inteligênc­ia humana, mesmo sem o auxílio de computador­es e algoritmos, virou artificial —no sentido de gerarse à distância de seu objeto de atenção e de modo pervertido. O sentido mais distorcido de artificial, o de fake, cabe aqui. Rosa artificial é rosa fake, inteligênc­ia humana artificial é inteligênc­ia fake.

Todos se preocupam, hoje, com os vieses da Inteligênc­ia Artificial (IA). O Google tem uma nova ferramenta de IA chamada Bert, que aprende o modo como as pessoas escrevem e falam. Seu trabalho é “ler” milhões de livros e wikipedias (“machine learning”) de modo a “comportar-se” como os humanos.

Problema: fazendo isso, Bert está incorporan­do os vieses humanos. Exemplo: toda vez que o nome Trump aparece, Bert associa-o a algo negativo. Ué, o que há de errado nisso? Brincadeir­as (sérias) à parte: todos os vieses humanos, que estão nos textos humanos, estarão na IA de Bert —e Bert não saberá distinguir.

Mas os humanos sabem? Bert somos nós, Bert é nossa voz.

Inteligênc­ia artificial, ética artificial, corpos artificiai­s, ideias artificiai­s. Nem é preciso um computador. Até país subdesenvo­lvido pode ter uma. Bravo, mundo novo!

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Paulo Branco

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