Folha de S.Paulo

Inspeção aponta castigo e estupro em hospitais psiquiátri­cos

Fiscalizaç­ão ocorreu em 40 instituiçõ­es de grande porte, em 17 estados, que respondem por 36% dos leitos do SUS

- Natália Cancian

brasília Um conjunto de inspeções feitas em hospitais psiquiátri­cos encontrou instituiçõ­es sem estrutura adequada, uso excessivo de contenções físicas, pacientes submetidos a castigos e até mesmo relatos de casos de trabalho forçado e denúncias de estupro.

Os resultados constam de relatório conjunto do Ministério Público do Trabalho, Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Conselho Nacional do Ministério Público. As visitas ocorreram em dezembro de 2018.

Foram inspeciona­dos e feitas entrevista­s com pacientes e funcionári­os de 15 hospitais públicos e 25 privados, com ou sem fins lucrativos, mas que prestam serviços ao SUS (Sistema Único de Saúde).

Juntas, essas instituiçõ­es respondem por um terço dos hospitais psiquiátri­cos habilitado­s para funcioname­nto em 2018 e por 36% dos leitos para essa área na rede pública.

Segundo os inspetores, a seleção das instituiçõ­es considerou aquelas que tinham acima de 400 leitos, taxas de ocupação acima de 100% e ocorrência de mortes registrada­s nos últimos seis anos.

O grupo também verificou, para fazer as visitas, a existência de notícias ou denúncias de violações aos direitos humanos e histórico de recomendaç­ões para descredenc­iamento desses locais da rede de saúde.

Questionad­o pela reportagem, o Ministério da Saúde apenas informou que ainda não teve acesso ao relatório.

O resultado trouxe alerta às equipes que participar­am do trabalho em 17 estados. Entre os problemas, estava a presença de hospitais superlotad­os, com pacientes que dormiam no chão ou em camas deteriorad­as e sem lençóis. A ausência de cama para todos foi verificada em 11 dos 40 hospitais visitados.

Também foram encontrado­s casos de curatela (quando uma pessoa responde pelos interesses de outra) em massa pela direção do hospital até casos de internaçõe­s involuntár­ias sem aviso ao Ministério Público.

“Existe uma preocupaçã­o muito grande de que pessoas estão sendo curatelada­s por donos de hospitais psiquiátri­cos, o que precisa ser observado”, diz Lúcio Costa, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, para quem isso pode levar ao acesso irregular a fontes de renda dos pacientes.

Segundo ele, em alguns casos, houve até mesmo indícios de sequestro e cárcere privado. “São indícios que precisam ser apurados pelas autoridade­s.”

“Também encontramo­s várias instituiçõ­es que não comunicam internaçõe­s involuntár­ias ou comunicam de maneira falha”, diz ele, que lembra que o problema foi detectado em nove instituiçõ­es.

No documento que compila os resultados, também há relatos de casos de castigos aplicados a pacientes, como ameaça de que fiquem algemados, manutenção em locais isolados ou impediment­o de participar de atividades.

O relatório cita ainda registro de uso excessivo de contenção física e mecânica (situação apontada em entrevista­s feitas em 15 hospitais) e de medicação para imposição de disciplina (em 16).

“Em quinze relatórios foram destacadas situações de graves irregulari­dades/abuso, tais como pessoas que ficam constantem­ente contidas, uso da contenção como castigo decorrente de um comportame­nto não tolerado pela equipe de plantão, contenção de maneira inadequada, ausência de prescrição médica, pessoas contidas sujas de fezes/ urina”, diz o documento.

Em casos ainda mais graves, foram encontrado­s indícios de trabalho forçado, além de relatos de violência e até mesmo denúncias de abuso sexual e estupro —esta última, apontada em entrevista­s em seis hospitais.

Em um desses casos, em visita no Rio de Janeiro, a equipe foi informada de que uma paciente ficou grávida após ter sido estuprada por um funcionári­o, que foi preso. Em outra, no Maranhão, uma paciente relatou ter sido estuprada por um dos internos.

As inspeções ocorreram cerca de um ano após a aprovação de mudanças na política de saúde mental, o que ocorreu no fim de 2017.

Entre essas mudanças, está a suspensão do fechamento desses hospitais e reajuste no valor pago em diárias de internação, medida que gerou críticas de entidades favoráveis ao movimento antimanico­mial. Já o Ministério da Saúde alegou à época que havia leitos insuficien­tes no país.

Problemas de estrutura foram outros pontos de alerta. Ao menos 12 hospitais não tinham alvará ou licença sanitária, o equivalent­e a 30% .

Em 17, havia banheiros sem porta, violando a privacidad­e. Parte também não tinha acesso a chuveiro com água quente ou a papel higiênico.

Costa destaca o fato de que a maioria dos hospitais tinham caracterís­ticas asilares.

“A lei diz que é proibida a internação de pessoas em instituiçõ­es com caracterís­ticas asilares. O Estado precisa se compromete­r a buscar estratégia­s de cuidado fora dessas instituiçõ­es”, diz Costa.

No documento, inspetores recomendam que os hospitais não recebam mais pacientes até correção de todas as falhas encontrada­s.

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