Folha de S.Paulo

O monstro

Não foi o patrão que ficou maluco, fomos nós

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Abri a porta do armário e dei de cara com o monstro de novo. Sua respiração ofegante fazia tremular as camisas nos cabides.

Decidida a ignorar sua presença, experiment­ei uma camiseta que havia usado recentemen­te. É claro que ele não deixaria barato: “Você não é uma personagem da Turma da Mônica para repetir a mesma roupa todo dia”.

De fato, no universo criado por Mauricio de Sousa ninguém perde tempo escolhendo o que vai vestir. A Mônica nem sequer usa sapatos e tenho certeza de que seu guarda-roupa monocromát­ico mataria o monstro de tédio.

O monstro no meu armário é um amontoado de peças encalhadas com um buraco sem fundo no lugar da boca. Ele vive na escuridão, entregue ao vício em roupas novas.

Reconhece o farfalhar das sacolas da Zara a metros de distância. Ama fast fashion como algumas pessoas amam fast food: mesmo sabendo que faz mal, que é nocivo ao planeta, que o preço não compensa e que o prazer logo se transforma­rá em culpa.

Aos olhos do monstro, nenhuma roupa naquele armário me cai bem. Ele consegue ser mais cruel do que um espelho de aumento. Insiste que não tenho o que vestir. É incapaz de enxergar a si mesmo e quer que eu me sinta da mesma forma.

Além de aniquilar minha autoestima, sua missão é me soterrar em dívidas e em blusas com mangas bufantes. Mas o mundo não precisa de mais uma perdulária fantasiada de pirata, e eu estava disposta a romper aquele ciclo vicioso de uma vez por todas.

O problema é que nem os Caça-Fantasmas ou a Marie

Kondo em pessoa conseguiri­am dar cabo do monstro naquela sexta-feira maldita, conhecida popularmen­te como Black Friday.

A Black Friday é quando os monstros saem do armário, pisoteando uns aos outros em shopping centers, disputando produtos entre si num cabo de guerra patético, parcelando impulsos a perder de vista.

Eu juro que tentei impedi-lo. Segui o monstro pelas escadas rolantes, entrei com ele em provadores, suportei filas intermináv­eis em seu encalço, mas ele estava fora de controle.

Achou até que ia me comprar com um presente. E conseguiu. Com um desconto irrecusáve­l, ainda por cima. Não foi o patrão que ficou maluco, fomos nós.

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Silvis

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