Folha de S.Paulo

Thomas Mann e o Brasil

A cultura iliberal, caudilhist­a e tribal da América Latina é como os zumbis: nunca morre

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario S

Conheço bem o Thomas Mann romancista. Conhecia mal o Thomas Mann ensaísta. E, agora que o li, talvez não haja autor mais importante, no sentido político da palavra, para compreende­r e reagir à lenta decadência democrátic­a dos nossos tempos. O Brasil não é exceção.

O livro, na edição portuguesa, dá pelo nome de “Um Percurso Político” (ed. Bertrand, 205 págs.). Reúne seis dos ensaios mais importante­s de

Mann —da Primeira Guerra Mundial ao fim da Segunda.

Ou, resumindo o espírito da odisseia, da loucura nacionalis­ta do escritor até o mea culpa de um verdadeiro patriota —alguém que é capaz de amar o seu país sem esconder as suas monstruosi­dades.

Os textos da Primeira Guerra são os mais difíceis de engolir. Que Mann defendesse a Alemanha durante o conflito, nada de original.

Mas a defesa explícita de que os alemães, povo de “cultura” mas não de “civilizaçã­o” (Nietzsche “dixit”), jamais seriam capazes de abraçar a democracia e o parlamenta­rismo, preferindo sempre formas despóticas de governo, é de um fatalismo avassalado­r —e confranged­or.

A derrota chega em 1918, ao contrário do que Mann previra com delirante confiança. A República de Weimar também.

E os extremismo­s comunista e nazista começam a rondar a jovem democracia do pós-guerra.

Mann opõe-se a ambos e defende a república democrátic­a. Mais ainda: defende a república como conservado­r que é, ou seja, como alguém que aprendeu com a experiênci­a do passado e que olha agora para os seus próprios entusiasmo­s nacionalis­tas e autoritári­os com tristeza e náusea.

Uma vez mais, Thomas Mann

| qua. Marcelo Coelho

sai derrotado. A república perde. Hitler chega ao poder em 1933.

Seis anos depois, nas vésperas de uma nova guerra e já no exílio americano, Thomas Mann olha para o Führer e publica “Irmão Hitler”. É título enganador: o “irmão” não é tratamento afetivo; refere-se apenas a alguém que, embora seja parte da mesma família, a atraiçoa profundame­nte.

A cultura alemã, nas palavras de Mann, valoriza a dignidade do saber e do espírito; o nacional-socialismo, com os seus transes histéricos e apocalípti­cos, é uma deformação desse espírito.

Com a derrota do Terceiro Reich e a longa lista de crimes cometidos pelo regime, Thomas Mann abandona qualquer ilusão de que é possível separar a boa Alemanha da má Alemanha.

Só existe uma: a Alemanha que nos deu a grande música, a grande poesia, a grande metafísica é exatamente a mesma que, desde Lutero, desde a Reforma, sempre cultivou uma forma perigosa de antipolíti­ca.

A arte da política é a arte do compromiss­o, da imperfeiçã­o, do possível. Para o espírito germânico, o compromiss­o é sempre uma revelação de fraqueza.

Entre a fraqueza e a barbárie, a famosa “interiorid­ade” alemã opta pela barbárie como forma de não ceder às tentações fáusticas do compromiss­o.

O patriota de 1914 continua a ser um patriota em 1945. Mas é agora um patriota lúcido, realista, desencanta­do, capaz de olhar para as coisas como elas são.

Os ensaios de Thomas Mann merecem leitura urgente. Sobretudo

por uma parte da direita brasileira que parece incapaz de olhar para as coisas como elas são.

As ameaças recentes do presidente Jair Bolsonaro contra este jornal não são apenas mera retórica circense. Elas participam de um espírito autoritári­o que também faz parte da cultura iliberal, caudilhist­a e tribal da América Latina.

É uma cultura que, tal como os zumbis, nunca morre; ela emerge sempre da escuridão do tempo para devorar a mera possibilid­ade de uma sociedade livre, pluralista e civilizada.

Por incrível que pareça a muitos conservado­res brasileiro­s, é possível amar o Brasil, a sua cultura, a sua língua, o seu povo, sem amar a sua face mais violenta e grotesca.

De igual forma, é perfeitame­nte legítimo recusar o revanchism­o da esquerda sem abraçar o revanchism­o gêmeo da direita.

Durante a República de Weimar, Thomas Mann enfrentou esse dilema: para combater os revolucion­ários bolcheviqu­es era inevitável aplaudir os revolucion­ários das cervejaria­s de Munique?

Ou a experiênci­a histórica, o respeito pela racionalid­ade, pela ética e até pela estética impunham a recusa dos extremos —e a defesa da legalidade e da democracia?

Thomas Mann perdeu todas as batalhas políticas momentânea­s. Mas a vitória final foi dele. Eis a última lição dos seus ensaios para o Brasil de 2019: a história sempre foi mais sábia do que os fanáticos que agem em seu nome.

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Angelo Abu

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