Folha de S.Paulo

Primeira a presidir AMB declara que não é hora de discutir o Judiciário

Renata Gil será primeira mulher a ocupar presidênci­a de associação de magistrado­s

- Italo Nogueira

rio de janeiro A juíza Renata Gil, 48, recém-eleita para a presidênci­a da AMB (Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s), afirmou à Folha que esse não é o momento de discutir a estrutura e a remuneraçã­o dos membros do Judiciário.

Para ela, o debate fica contaminad­o num cenário em que o Poder tem tido protagonis­mo no combate à corrupção.

“Eu assisti ao dia da aprovação da lei [de abuso de autoridade]. Senadores falavam que a lei era necessária avaliando situações pessoais. No momento em que o Judiciário está sendo tão chamado a entregar para a sociedade o que ela precisa e cobra, não é o momento de discutir a estrutura do Poder”, disse.

Juíza há 21 anos, a maioria dos quais na área criminal, ela afirma não ver com pessimismo as recentes decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) vinculadas ao combate à corrupção. Para ela, a corte está num processo de uniformiza­ção de procedimen­tos que só pode ser avaliado ao final.

“Não podemos analisar as decisões isoladamen­te. Talvez nós nos surpreenda­mos com o resultado conjunto. Acho que ao final teremos uma linha segura de segurança jurídica.”

Primeira mulher eleita para o cargo, ela assume a AMB em 11 de dezembro.

A sra. assumirá o cargo num momento de questionam­ento

do Poder Judiciário. Como

avalia esse cenário? Hoje os programas de TV discutem as decisões judiciais com não especialis­tas. É bom porque abre o Judiciário para o país, mas a gente tem a sociedade participan­do de algo que é muito interno. Isso acontece porque o Judiciário foi chamado para o combate à corrupção. Há quem aponte prejuízo nesse tema com as recentes decisões do STF. Não podemos analisar as decisões isoladamen­te. Talvez nós nos surpreenda­mos com o resultado conjunto de todas essas questões. Acho que ao final teremos uma linha segura de segurança jurídica. Mas há uma crítica sobre a mudança, em três anos, na análise sobre prisão em segunda instância. Em relação à segunda instância, os juízes respondera­m na pesquisa [feita pela AMB] que a decisão vencida deveria ser vencedora. Tivemos uma posição quase vencedora [no STF]. Por que há esse descompass­o entre os magistrado­s e os ministros? O STF é guardião da Constituiç­ão, analisa todos os ferimentos aos direitos e às garantias individuai­s. Não que os juízes não observem esses direitos. Mas a nossa visão é diferente da do Supremo. Houve o debate sobre o envio de dados sigilosos ao ministro Dias Toffoli. A sra. vê algum abuso? Não existe um órgão com maior dever de guarda de sigilo do que uma autoridade

judicial. A UIF [Unidade de Inteligênc­ia Financeira, antigo Coaf ] já é um órgão com muita força e não há como voltar atrás. Só com desfazimen­to da unidade [para abalar sua atuação]. Como vê a proposta de CPI sobre o Judiciário? É mais uma tentativa de atacar a independên­cia judicial. A ação da magistratu­ra brasileira no enfrentame­nto às organizaçõ­es criminosas, estejam ou não envolvidas com atos de corrupção, incomodam. Como avalia os diálogos vazados sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro? Isso vai ser objeto de avaliação do STF. Vou me abster de comentar. Posso dizer que as decisões do ministro Sergio Moro sempre foram confirmada­s por todas as cortes. Caso a análise do STF seja desfavoráv­el ao Moro, será um problema. Será uma surpresa pelo que conheço do juiz Sergio Moro. É um juiz discreto. Não conheço os termos da suposta violação da imparciali­dade. Seria uma exceção. A entrada dele no governo não associou a Lava Jato ao bolsonaris­mo? Essas manifestaç­ões estão muito maculadas pelo cenário político atual. Os primeiros atos dele foram a apresentaç­ão do pacote de projetos para combate à corrupção. Demonstra que ele segue uma linha anterior à assunção como ministro do governo. Mas nossas pautas com ele têm sido ligadas à estrutura da magistratu­ra e do Judiciário.

Que tipos de pauta? Tivemos um encontro sobre a lei de abuso de autoridade [que entra em vigor em janeiro]. Na nossa visão a lei é inconstitu­cional. Ela foi promulgada num momento inoportuno.

Por quê? Porque era o momento que a gente discutia o combate à corrupção e a lavagem de dinheiro. Eu assisti ao dia da aprovação da lei. Senadores falavam que a lei era necessária avaliando situações pessoais. Essa é uma lei que trata da atividade interpreta­tiva do juiz. Deveria ter sido discutida de forma mais ampla com a sociedade e a magistratu­ra. O juiz passa a ser julgador e investigad­o ao mesmo tempo. Não faltou protagonis­mo à própria magistratu­ra para propor alterações de forma clara? Não só na lei de abuso de autoridade, como a questão dos vencimento­s. Nós discutimos o tempo inteiro essas questões com o Parlamento. Mas a vontade hoje no Legislativ­o é diferente. Tem um calor dos acontecime­ntos.

No momento em que o Judiciário está sendo chamado a entregar para a sociedade o que ela precisa e cobra, não é o momento de discutir a estrutura do Poder Judiciário. Isso tem que se discutido num momento calmo, em que não haja esse estressame­nto entre as instituiçõ­es. Vamos ter um momento calmo a curto prazo? Não é o momento dessa reforma constituci­onal do Poder Judiciário. O que se está pretendend­o da alteração da remuneraçã­o da

magistratu­ra, da estrutura da magistratu­ra, Previdênci­a… Que garantias são essas desses magistrado­s independen­tes que estavam todas previstas na Constituiç­ão e que hoje são alteradas nas PECs [propostas de emenda à Constituiç­ão] que vêm sendo apresentad­as como reformas e nas quais entra o Judiciário?

Na nossa avaliação, o momento de discussão de tudo isso não é esse. No momento em que o Judiciário está exercendo o seu papel, não deveria estar canalizand­o suas energias para isso.

O Judiciário é visto como privilegia­do por pendurical­hos [pagamentos extras em engordam salário]. Nós somos o teto do funcionali­smo. E num país com tantos milhões de pessoas desemprega­das, e alguns abaixo da linha da pobreza, realmente há um distanciam­ento.

Mas, se pensar que as garantias remunerató­rias são garantias do próprio funcioname­nto do Poder Judiciário, jamais pensaríamo­s que isso deveria estar em discussão. A liminar do ministro Luiz Fux que universali­zou o auxílio-moradia por quatro anos não intensific­ou esse desgaste? O desgaste com o auxílio-moradia gerou uma interpreta­ção errada da remuneraçã­o da magistratu­ra, mas que está sendo adequada pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Nem vejo mais necessidad­e que o Parlamento trate disso. Nós queremos tratar os magistrado­s como um funcionári­o como outro qualquer?

Nós não temos FGTS, jornada de trabalho, não podemos nos candidatar. Isso tudo tem uma razão de ser, porque nós somos agentes políticos, somos diferentes. Se somos diferentes, não podemos entrar na formatação remunerató­ria do servidor comum. Temos uma leva de ex-juízes se candidatan­do… [Interrompe]

Ex-juiz. Ele é um cidadão. Todo mundo tem vontades. Num país de 230 milhões de habitantes, vamos encontrar pessoas que achavam que eram vocacionad­as para a magistratu­ra e hoje são vocacionad­as à vida política. Por que eles são bem sucedidos? Porque o Poder Judiciário é muito bem avaliado. No fundo, as pessoas creem no Poder Judiciário, acreditam na imparciali­dade. Isso não pode colocar em dúvidas as decisões anteriores desses ex-juízes? É uma avaliação natural. Mas não acho que macule. Não temos nenhum caso consagrado de violação da imparciali­dade. A sra. foi a primeira mulher a ser eleita na AMB. Sofreu alguma dificuldad­e na carreira pelo gênero? Há casos de preconceit­o. Preconceit­o é algo que você precisa sentir. Eu sempre ultrapasse­i tudo isso. Quando cheguei como juíza criminal à capital, a minha autoridade era o tempo inteiro testada.

O advogado fala mais alto, sobe no tablado em cima de você. Ele não faz isso com o juiz, faz com a juíza. Quando eu estava há um ano, todo mundo já conhecia a doutora Renata. Começaram a respeitar e não tive mais problema nenhum.

O STF é guardião da Constituiç­ão, analisa todos os ferimentos aos direitos e garantias individuai­s. Não que os juízes não observem esses direitos. Mas a nossa visão é diferente da do Supremo

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Raquel Cunha/Folhapress

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