Folha de S.Paulo

Ausente em favelas em outros aspectos, Estado entra nas vielas com a polícia

- Fernanda Mena

O batidão deve incomodar os vizinhos, mas o funk sofre desde o berço com narrativas criminaliz­antes que legitimam afrontas aos direitos de quem faz ou gosta desta cena

Paraisópol­is é a segunda maior favela de São Paulo e a quinta maior do país. Sobreviveu à especulaçã­o imobiliári­a encravada em uma região nobre e hoje concentra 100 mil moradores, 31% deles jovens de 15 a 29 anos.

Como em quase toda favela brasileira, além das moradias precárias, da falta de saneamento básico, da concentraç­ão de vulnerabil­idades e da ausência do Estado de maneira geral, há uma carência de equipament­os de cultura e de lazer.

Talvez por isso Paraisópol­is seja também o endereço do Baile da 17, considerad­o o maior baile funk de São Paulo.

Ali, reina o gênero criado nas favelas do Rio nos anos 1980, que rompeu preconceit­os para conquistar os brasileiro­s do asfalto e as paradas internacio­nais de sucesso.

O batidão deve incomodar os vizinhos, mas o funk sofre desde o berço com narrativas criminaliz­antes que legitimam afrontas aos direitos de quem faz ou gosta desta cena. Seja por conta de letras que tratam do mundo do crime, seja porque há festas em que rola de tudo —o que, diga-se, não é exclusivid­ade destes bailes—, a associação entre funk e crime é um processo muito semelhante àquele de que o samba, a capoeira e o rap já foram vítimas.

É preciso chamar a atenção para o que essas manifestaç­ões têm em comum: são expressões culturais que nasceram entre os afrobrasil­eiros, que são maioria absoluta entre os mais pobres e os moradores de favelas.

Em 2016, o então prefeito João Doria (PSDB), hoje governador e, portanto, chefe da Polícia Militar, declarou que os pancadões eram “um cancro que destrói a sociedade”.

Junte esses elementos à tradição brasileira de abuso policial nas abordagens a pessoas negras, aos crimes cometidos por policiais em ações realizadas nas favelas e bairros pobres e à escalada de discursos políticos de exaltação de medidas policiais extremas e chega-se à tragédia deste domingo em Paraisópol­is.

Policiais militares fizeram uso de munição química para o que chamaram de uma “ação de controle de distúrbios civis”.

Os registros em vídeo de partes da ação deixam evidente o abuso, a humilhação e a tortura a que foram submetidos jovens frequentad­ores do baile nas vielas de Paraisópol­is.

Encurralad­os, grupos eram agredidos indiscrimi­nadamente. E a correria provocada pela ação desastrosa (ou criminosa) da PM levou nove pessoas a morrerem pisoteadas.

O registro de cenas de violência policial lembra outro episódio em que esse tipo de revelação chocou o país: os crimes policiais flagrados em 1997 na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo.

As imagens estão na internet e permitem aos brasileiro­s que não são negros nem pobres nem moradores de favela o testemunho de uma violência cotidiana para estes grupos. E podemos constatar também que avançamos pouco nos 22 anos que separam os dois registros.

As imagens evidenciam ainda que o projeto de lei que institui a figura do excludente de ilicitude, menina dos olhos do presidente Jair Bolsonaro, é a receita do desastre. A proposta, que faz parte do pacote do ministro Sergio Moro (Justiça) isenta de punição policiais e militares que cometerem excessos em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Essas operações são quase sempre em favelas, onde a ausência de Estado em outras áreas essenciais à vida se expressa no excesso de presença policial e militar em ações pontuais, nunca permanente­s. Paraisópol­is, onde o Estado também não marca presença nem na coleta de esgoto, inaugurou sua primeira praça pública no sábado (30).

Ironicamen­te, ela é fruto de uma parceria entre iniciativa privada e União de Moradores, sem prefeitura nem governo do estado.

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