Folha de S.Paulo

Exposição destaca trabalho coletivo do Grupo de Bagé

- Paula Sperb

A efervescên­cia cultural na fronteiriç­a Bagé parecia improvável na década de 1940 —a 380 km de Porto Alegre, o lugar está mais próximo de Montevidéu e de Buenos Aires do que de São Paulo e do Rio de Janeiro.

“Bagé, como se sabe, é uma cidade que vive exclusivam­ente da pecuária. A verdade é que a vida entregue às lides do campo não predispõe muito ao desenvolvi­mento de sensibilid­ades, nem apuro de dotes intelectua­is”, escreveu Pedro Wayne em reportagem publicada em 1946, na revista O Globo, editada na capital gaúcha.

Mas, em uma casa típica das estâncias da região da campanha funcionava um ateliê, com “quadros terminados”, “estudos de tipos e naturezas mortas”, “caixas com pincéis e tubos de tintas”, descreve Wayne.

“Toda essa desordenad­a simplicida­de, todo esse inesperado não é mais do que o Montparnas­se de Bagé. Sim, senhores: o Montparnas­se de Bagé”, acrescento­u o autor do romance “Xarqueada”, de 1937, em referência ao bairro parisiense conhecido por abrigar artistas e intelectua­is.

Wayne registrava o surgimento do Grupo de Bagé, que iniciou com Glauco Rodrigues (1929-2004) e Glênio Bianchetti (1928-2014). Aos dois se somaram Danúbio Gonçalves (1925-2019) e Carlos Scliar (1920-2001), de Santa Maria —os dois últimos tinham estudado na Europa.

Agora, os quatro de Bagé, como também eram chamados, ganham sua maior exposição conjunta, com 180 obras, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. A mostra, “Os Quatro - Grupo de Bagé”, foi inaugurada no último sábado (30) e pode ser visitada até 1º de março.

Dois andares do prédio são ocupados pelas obras, divididas em duas fases: a inicial, a partir da década de 1940, e a dos anos 1970, depois de uma nova reunião do grupo, quando passaram cerca de um mês produzindo juntos. Entre as técnicas das obras, há xilogravur­a, litografia, óleo e acrílico sobre tela e até serigrafia.

“Glauco pintava assobiando, cantarolan­do. Ele era o oposto do Bianchetti, que lutava contra a tela como numa batalha. O Danúbio era muito técnico, procurava novos materiais e maneiras de pintar. Scliar era muito agregador, tinha uma base mais social, o mais ativista”, relembra o amigo Deny Bonorino, que aos 13 anos começou a frequentar o ateliê. Seu autorretra­to, de 1943, integra a mostra.

“Era uma atmosfera de muito trabalho, com dedicação diária, como um sacerdócio. Tinham um espírito renascenti­sta de dominar diferentes técnicas”, diz Bonorino.

Naquele período, o abstrato predominav­a nas artes visuais brasileira­s. O grupo optou consciente­mente por um caminho contrário. Eles entendiam que o realismo colaborava para que arte fosse compreendi­da por mais gente.

Influencia­dos pelo Taller de Gráfica Popular, fundado por Leopoldo Mendez, no México, buscavam retratar trabalhado­res das charqueada­s, minas de carvão e o gaúcho simples, sem idealizaçã­o mítica de sua figura.

Scliar era filiado ao Partido Comunista e integrou a Força Expedicion­ária Brasileira, a FEB, como militar no combate aos nazistas, na Segunda Guerra Mundial.

“Eles foram influencia­dos pelo realismo socialista, mas subvertera­m esse estilo. Diferentem­ente do ‘super-homem soviético’, eles mostravam a dor do povo, a tragédia dos trabalhado­res. Não pintavam o ‘centauro do pampa’, mas o homem comum. Era uma defesa do ser humano”, afirma o ator Sapiran Brito, de Bagé, que conviveu com o quarteto.

“A exposição recupera a memória de um dos movimentos artísticos mais importante­s do Brasil. Não são apenas gaúchos, mas brasileiro­s. Eles foram fundamenta­is para a populariza­ção dos clubes de gravura no Brasil. Tinham um compromiss­o social para que a arte fosse acessível e não ficasse restrita à elite”, diz Emilio Kalil, superinten­dente da Fundação Iberê.

Para Kalil, a frase de Scliar que encerra a mostra resume o sentido do conjunto exposto: “O que fazemos cada um nada tem a ver com o passado, mas depende intrinseca­mente dele”.

Os Quatro - Grupo de Bagé

Fundação Iberê Camargo, av. Padre Cacique, 2.000, Cristal, Porto Alegre. Qua. a dom., das 14h às 19h. Até 1º de março de 2020. Grátis

 ?? Raul Holtz/Divulgação ?? Obra de Danúbio Gonçalves que integra a retrospect­iva do Grupo de Bagé na Fundação Iberê Camargo
Raul Holtz/Divulgação Obra de Danúbio Gonçalves que integra a retrospect­iva do Grupo de Bagé na Fundação Iberê Camargo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil