Ter o direito legal de morrer ajudou belga que foi campeã paraolímpica a viver
Belga Marieke Vervoort conquistou medalhas, mas optou pela eutanásia por não suportar dores
diest (bélgica)| the newyork times Taças de champanhe foram rapidamente desembrulhadas das caixas em que estavam guardadas, enchidas até a borda e distribuídas aos presentes. Dezenas de pessoas estavam no pequeno apartamento de Marieke Vervoort, sem saber bem o que dizer ou fazer. A ocasião era uma celebração, garantiu Vervoort aos convidados. Mas não era essa a sensação que eles sentiam.
Onze anos antes, Vervoort havia obtido a documentação necessária para se suicidar com assistência médica. Desde a adolescência, ela vinha combatendo uma doença muscular degenerativa que lhe tirou o uso das pernas, acabou com sua independência e lhe causava dor agoniante e incansável. A papelada lhe restituía algum controle. Pelas leis da Bélgica, Vervoort estava autorizada a pôr fim à sua vida quando quisesse.
Mas em lugar disso ela seguiu em frente –com vigor restaurado. Poucos anos depois, ela atingiu alturas inesperadas em sua carreira como velocista em cadeira de rodas, conquistando um ouro em Londres-2012.
Tornou-se uma celebridade, em seu pais e no exterior. Viajou o mundo contando a história de sua vida, tornando-a uma narrativa inspiradora.
No entanto, ela continuava a ter os papéis. E agora, passada mais de uma década de incertezas, dores e alegrias, de desejar que sua vida acabasse e ao mesmo tempo temer a morte, Vervoort havia convidado as pessoas que amava a visitá-la em sua casa pelo mais dilacerante dos motivos: dali a três dias, ela tinha uma consulta marcada com a morte.
“É uma sensação muito, muito, muito estranha”, disse sua mãe, Odette Pauwels, contemplando a festa.
Em diversas ocasiões Vervoort chegou perto de marcar uma data para morrer, mas sempre mudou de ideia. Alguma coisa aparecia, surgiam conflitos, havia uma data a esperar, outra razão para viver.
Seus amigos e parentes acompanharam esse cabo de guerra, a alternância incessante entre sua dor cada vez mais forte e quaisquer pequenas realizações que ela era capaz de experimentar.
Mas daquela vez Vervoort parecia decidida. Ao longo da semana anterior, ela começou a discutir o procedimento com um grau de clareza e seriedade que as pessoas que a conheciam melhor admitiram não ver com frequência.
“É algo que contemplo com expectativa”, ela disse sobre sua morte. “Aguardo a oportunidade de enfim poder descansar minha mente, não sentir dor”. Ela se deteve. “Tudo que odeio desaparecerá.”
O que havia começado como uma infância feliz –pais amorosos, uma irmã mais nova, longos dias de praticar esportes na rua– se complicou quando ela chegou à adolescência, e surgiu a dor que a castigaria pelo resto da vida.
A dor surgiu inicialmente como um formigamento nos pés. Com o passar dos anos, o formigamento se tornou dor, subindo por suas pernas como se elas estivessem em chamas e solapando sua força. Vervoort passou a adolescência de muletas. Aos 20 anos, começou a usar cadeira de rodas.
Com seus sonhos infantis de se tornar professora destruídos pela saúde precária, Vervoort começou a encontrar sentido para sua vida no esporte: basquete em cadeira de rodas, mergulho, triatlo. Mas a dor constante e o medo terminaram por lançála a uma profunda depressão.
Aos 29 anos, ela decidiu que sua doença era um fardo pesado demais. Começou a guardar pílulas, imaginando que podia terminar as coisas desse jeito. Como último recurso, um psiquiatra sugeriu que ela procurasse o médico Wim Distelmans, o principal proponente do suicídio com assistência médica na Bélgica.
O direito à eutanásia foi estabelecido no país em 2002, para pacientes que sofram de uma condição médica “sem esperança”, acompanhada por sofrimento “insuportável”.
Nenhum lugar tem leis mais liberais sobre o suicídio assistido. Mas ainda que a escolha de se suicidar com assistência médica tenha se tornado mais comum, ainda há muitas pessoas, como os pais de Vervoort, que se sentem filosoficamente desconfortáveis.
Depois de exames detalhados, o médico concedeu autorização para que Vervoort pusesse fim à própria vida. Mas acrescentou que ela não parecia muito disposta a levar a ideia a cabo. Ela concordou.
“Eu só queria ter o papel em mãos para quando chegasse a hora de as coisas se tornarem pesadas demais para mim, para quando eu viesse a precisar de alguém tomando conta de mim dia e noite, para quando eu estivesse sofrendo um excesso de dor”, ela disse. “Não quero viver desse jeito.”
Segundo Vervoort, os documentos permitiram que ela retomasse parte do controle sobre sua própria vida. Ela deixou de ter medo da morte, porque a tinha nas mãos.
Liberta das velhas ansiedades, ela passou por uma fase longa de resultados excelentes no esporte paraolímpico. Além do ouro em Londres, ela ficou com a prata nos 200 m. Depois vieram três ouros no Mundial de 2015, em Doha, e duas medalhas na Paraolimpíada do Rio, em 2016 –prata nos 400 m e bronze nos 100 m.
As vitórias mudaram sua vida. Sob os holofotes, de repente, ela floresceu. Fez palestras motivacionais em empresas e obteve patrocinadores.
Se a Paraolimpíada do Rio foi uma plataforma de lançamento para sua fama, o que veio depois –sua aposentadoria– sinalizaria uma virada para o sombrio e inevitável.
A dor se intensificou. Pela metade de 2017, estava viciada em morfina. Seus dias, antes ocupados por treinos, se tornaram um borrão de internações, tratamentos para dor e sonecas induzidas por drogas.
As pessoas mais próximas a Vervoort viam seus olhos perdendo o brilho. Ouviam sua fala perder a clareza, se acostumaram a rememorá-la sobre conversas que ela esquecia inteiramente, esperavam pacientemente quando ela dormia no meio de uma frase.
Os pais dela choravam e viviam com medo do telefonema que anunciaria que ela tinha feito planos para passar pelo suicídio assistido.
Eles tinham a esperança de que Vervoort mudasse de ideia. Havia dias em que sua filha voltava a ser a pessoa animada do passado, mas as demandas cotidianas lhe provocavam um cansaço obscuro.
Vervoort desmaiou na festa de aniversário de uma criança em 2017 e foi embora se sentindo impotente e embaraçada. A campeã estava definhando à vista de todos.
“Eu realmente tento curtir as coisas pequenas”, ela disse. “Mas as coisas pequenas estão ficando cada vez menores.”
Nos últimos meses, estava claro que sua impaciência vinha crescendo. Os médicos dela estavam encontrando dificuldades para marcar uma data, e Vervoort estava convencida de que eles estavam buscando razões para enrolar.
“Quando me disserem o dia”, ela disse, “vou ser a pessoa mais feliz do planeta”.
Vervoort marcou sua festa de despedida para um sábado de outubro, em seu apartamento, sem muita antecedência. Três dias mais tarde, na terça, os pais a levaram para casa, dessa vez para morrer. Pararam na farmácia, para apanhar os remédios de eutanásia, que, segundo a lei belga, é a família que deve comprar.
De volta ao apartamento de Vervoort, um pequeno grupo de pessoas estava presente para a despedida, mas ela não parecia muito consciente. Ela segurou no colo seu sobrinho Zappa, que tem menos de um mês. Ela havia marcado a eutanásia para depois do parto a fim de poder conhecê-lo.
Quando Distelmans chegou, duas horas mais tarde, a maioria das visitas tinha partido.
Distelmans e outro médico levaram Vervoort para seu quarto, onde fotos dela disputando provas foram coladas na porta, e a ajudaram a se acomodar na cama. Ela passou um último momento com os pais, a madrinha e dois de seus melhores amigos.
“Você tem certeza de que quer continuar?”, um dos médicos perguntou.
“Sim, quero continuar.” A hora da morte foi registrada como 20h15.
“Eu só queria ter o papel [de autorização da eutanásia] em mãos para quando chegasse a hora de as coisas se tornarem pesadas demais para mim, para quando eu viesse a precisar de alguém tomando conta de mim dia e noite, para quando eu estivesse sofrendo um excesso de dor. Não quero viver desse jeito Marieke Vervoort Explicando por que decidiu dar início ao processo para poder tirar sua própria vida
“Eu realmente tento curtir as coisas pequenas, mas as coisas pequenas estão ficando cada vez menores Marieke Vervoort Pouco antes de marcar a data de sua morte