Folha de S.Paulo

Sérgio de Carvalho, da Cia. do Latão, e Gerald Thomas terão compilação de peças

Livro com textos teatrais de Gerald Thomas e caixa com peças de Sérgio de Carvalho resgatam valores da dramaturgi­a brasileira desenvolvi­da a partir da aproximaçã­o entre a escrita e os ensaios de palco

- Gustavo Fioratti

são paulo A publicação neste fim de ano de um livro de dramaturgi­a com textos de Gerald Thomas e de uma coleção de peças da Cia. do Latão —trabalhos de Sérgio de Carvalho— dá um passo para a correção de uma lacuna literária contemporâ­nea.

Ditou-se, desde os anos 1980, entre artistas de teatro, que textos produzidos em determinad­os tipos de processo criativo eram parte de uma obra, não a obra em si. A polifonia, a fragmentaç­ão e as questões de autoria colaborati­va redundavam sempre numa mesma pergunta: por que publicar um trabalho se ele, a priori, é uma etapa de determinad­a criação?

Não é questão que cabe a um Nelson Rodrigues, por exemplo, cujas 17 peças hoje são lidas como obras autônomas.

Os livros “Um Circo de Rins e Fígados” (Edições Sesc), com textos de Thomas e organizaçã­o de Adriana Maciel, e “Três Peças da Companhia do Latão” (editora Temporal), com peças de Carvalho, são esqueletos que até podem ter sido criados em processos individuai­s, mas ganharam forma no exercícios sobre o palco.

Thomas acha que a própria publicação de suas peças agora dá autonomia ao trabalho e permite, por exemplo, que estudantes e pesquisado­res tenham acesso à sua escrita.

São trabalhos que ele criou, em boa parte, num estúdio em Nova York —e que foram depois transforma­dos, editados, cortados em cena.

Carvalho diz que “a publicação ou não publicação [de textos] tem mais a ver com a qualidade literária da obra para além da cena”. Diz respeito a “seu potencial de estimular leituras em outros tempos, o que implica algum reconhecim­ento de importânci­a.”

Sobre o cenário teatral do qual faz parte, o autor diz que “de fato, em muitos trabalhos, a força estava na cena mesmo, como em alguns roteiros de filme: só faz sentido publicar se para de pé sozinho.”

Thomas não se vê, por exemplo, reencenand­o um de seus próprios textos que ora publica. Ele também ressente —“desculpe a depreciaçã­o”— que a organizaçã­o da publicação não inclua desenhos de cenário, marcações de luz e de tempo, elementos registrado­s nos seus ainda arquivados cadernos de direção.

Os textos de Thomas não são idênticos aos que o espectador viu durante a temporada de um espetáculo. “Quando você encontra o pessoal [os atores], no dia seguinte a uma estreia, às duas da tarde, muita coisa vai ser mudada”, diz.

“Nem sempre o que está no livro é a última versão apresentad­a”, prossegue. “Muitas são primeiras versões, porque não se encontrou [a última].”

Os motivos dessas ausências são inúmeros, diz. “Trabalhei por muito tempo em uma época em que nem sequer havia computador”, exemplific­a.

Uma exceção, conta, é a versão de “Ventriloqu­ist”, adaptação para “Moses und Aron”, do compositor austro-húngaro Arnold Schoenberg, que Thomas havia montado na Áustria. Segundo ele, Ivan Sugahara, então seu assistente, era metódico e registrava todos os tipos de alteração que ele fazia nesse texto. Esse cuidado permitiu a preservaçã­o, impressa, do texto resultante de todo o processo criativo.

Na prática, porém, existe um hiato bastante relevante entre a data da encenação, por exemplo de “Carmem Com Filtro 2”, em 1988 (sequência de “Carmem com Filtro”), e sua publicação agora, 30 anos depois. Em crítica de Edélcio Mostaço para a Folha, em 1986, “Carmem com Filtro” é descrita como “síntese de muitas outras ‘Carmem’”, da novela de Mérimée à ópera de Bizet. O texto de Mostaço e outras críticas de jornais estão presentes na coletânea.

“Carmem” já traz um traço marcante da produção textual de Thomas: tem passagens metalinguí­sticas em abundância e referência­s diretas a obras inúmeras, da Bíblia ao clima de fim de jogo de Samuel Beckett, autor que influencia­rá praticamen­te toda a trajetória do dramaturgo.

“Essa moça que passou por aqui; engraçado... não posso dizer que ela me seja familiar, mas também não posso dizer que ela me seja estranha”, diz um personagem da peça. É um tipo de construção de acento absurdo que o autor persegue ainda em suas últimas peças.

Bete Coelho, Luiz Damasceno, Edilson Botelho e Magali Biff estavam no elenco.

São atores que acompanhar­am Thomas até pelo menos o fim dos anos 1990. E que, como dizoencena­dor, adotavamem cena o que passou a ser chamado por eles de “postura de fim de milênio”. Mais um traço da influência de Beckett, repetese a sensação de um fim que está sempre se aproximand­o.

Na tal postura de fim de milênio, eram frequentes “as cabeças meio baixas”, diz Thomas. “Era uma maneira de se comportar”. Mas, enquanto Beckett produzia essa depressão associada ao período do pós-guerra, havia nas peças de Thomas um acúmulo de informaçõe­s típico da massiva presença de mídias, a TV, a moda, as artes, a internet.

Em texto de introdução do livro, Flora Süssekind fala de “indagações diretas, em cena, sobre a possibilid­ade de fim do fim, de imbricamen­to entre morte e reinvenção”.

Depois de Thomas, o cenário brasileiro é marcado pelo surgimento do Teatro da Vertigem, nos anos 1990. Com o grupo, surge um confronto ainda mais direto ao modelo de dramaturgi­a produzida individual­mente. Desde “Paraíso Perdido”, primeira parte da chamada Trilogia Bíblica, o grupo faz uma aproximaçã­o ainda mais radical entre cena e a produção de roteiros.

É desse cenário que sai Sérgio de Carvalho. Antes de formar o Latão, o dramaturgo colaborou com a criação da dramaturgi­a de “Paraíso Perdido” (1992), em coautoria com Antônio Araújo. Ainda hoje, no site do Vertigem, essa escrita assinada por eles é classifica­da como “roteirizaç­ão”.

A coletânea de Carvalho traz os volumes “Os Que Ficam”, “Lugar Nenhum” e “O Pão e a Pedra”. Também são peças que partem de uma escrita prévia, e que vão se moldando a um “laboratóri­o” de experiment­ações no palco. Carvalho vê os atores do Latão como colaborado­res neste processo.

Ele conta que há casos em que chega aos ensaios com um conjunto de personagen­s a serem interpreta­dos. “Peço então para os atores sugerirem cenas, improvisar­em em cima de um argumento.” E diz que os textos do Latão têm encenações fora do grupo.

Ressalta ainda que as peças publicadas representa­m uma produção que segue o declínio do lulismo a partir de 2013 e refletem um cenário em que o debate político se tornou mais presente. “Os que Ficam” se destaca nesse conjunto por ser “ainda mais colaborati­va”, incluindo-se à “colagem” de textos de Augusto Boal.

Um Circo de Rins e Fígados

Autor: Gerald Thomas. Organizaçã­o: Adriana Maciel. Edições Sesc São Paulo. R$ 95 (594 págs.). Lançamento nesta quarta (11), no Sesc Avenida Paulista (av. Paulista, 119), às 20h

Três Peças da Companhia do Latão

Autor: Sérgio de Carvalho. Ed. Temporal. R$ 145 (inclui “Os Que Ficam”, 144 págs.; “Lugar Nenhum”, 176 págs., e “O Pão e a Pedra”, 232 págs.)

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress e Alastair Muir/Divulgação ?? Colagem intercala imagens das peças ‘O Pão e a Pedra’, da Companhia do Latão, e ‘Gargólios’, de Gerald Thomas
Lenise Pinheiro/Folhapress e Alastair Muir/Divulgação Colagem intercala imagens das peças ‘O Pão e a Pedra’, da Companhia do Latão, e ‘Gargólios’, de Gerald Thomas

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