Folha de S.Paulo

Relação está acima de ideologias, diz Fernández na posse

Na posse, presidente argentino diz que cresciment­o é mais importante do que pagar dívida

- Sylvia Colombo

Em sua posse, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, disse que a relação com o Brasil supera “qualquer diferença ideológica”, em referência a atritos com Jair Bolsonaro. O enviado brasileiro, Hamilton Mourão, também falou em cooperação.

buenos aires Em seu discurso de posse como presidente da Argentina, nesta terça (10), Alberto Fernández disse que o país vai continuar priorizand­o o Mercosul e que quer fortalecer a relação com o Brasil.

“Com o Brasil, temos que construir uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, que esteja respaldada pela nossa relação histórica e que vá além de qualquer diferença pessoal ou ideológica dos que governam na conjuntura.”

Enviado de última hora para a cerimônia por Jair Bolsonaro, o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, assentiu com a cabeça enquanto ouvia Fernández falar.

Mais cedo, Mourão havia dito que “ambos os países têm de se ajudar mutuamente”.

O futuro embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, valorizou a presença de Mourão na posse, dizendo ser um gesto “contundent­e e muito positivo para a nova relação que começa e, principalm­ente, para o comércio bilateral”.

Acrescento­u ainda que pretende, como embaixador, “encerrar a divisão que há entre os dois países”. “As diferenças que tivemos no início devem ficar no passado. Sou um homem de experiênci­a justamente nisso, em promover reconcilia­ções”, disse à Folha.

Em sua primeira fala oficial, Fernández defendeu a conciliaçã­o política no país e prometeu colocar o bem-estar do povo à frente do pagamento da dívida externa do país.

Ele disse que vai pagar a dívida de US$ 57 bilhões contraída com o FMI (Fundo Monetário Internacio­nal), “mas antes temos que crescer”. “Não podemos apresentar uma solução que comprometa o futuro de milhões de argentinos.”

Segundo o presidente, há “muros” por superar. “Muros da pobreza, da desigualda­de, das disparidad­es do país. Esses são os muros que existem, não os muros ideológico­s. Temos que deixar de apostar na polarizaçã­o”, disse. “Digo isso para os que votaram em mim e para os que não votaram”.

Fernández destacou que é necessário um pacto para superar “esse presente penoso, acabar com as dívidas de nossos compatriot­as e a do país.”

Ele culpou a política econômica de seu antecessor, Mauricio Macri, e afirmou que “o Estado estará presente, oferecendo linhas de créditos e de bônus, além de recursos para investimen­tos”.

Acrescento­u também que, nos próximos dias, haverá o anúncio de medidas para atender os mais pobres e que chamará um compromiss­o de empresas e produtores para que os preços não aumentem.

O discurso teve fortes tons nacionalis­tas. “Nossas respostas para essa crise têm de ser criadas por nós mesmos e não vamos seguir receitas de fora.” Neste momento, foi amplamente aplaudido.

Durante a fala, ele voltou a mencionar uma possível reforma judiciária e a criticar os que, segundo ele, usam a política para influencia­r a Justiça.

Do lado de fora do Congresso, em Buenos Aires, onde ocorreu o juramento de Fernández, e da Casa Rosada, onde depois tomam posse os ministros, havia grande público e muitos membros de organizaçõ­es sociais kirchneris­tas.

Antes de sair de casa, em Puerto Madero, em direção ao local da cerimônia, Fernández divulgou uma foto ao lado do cachorro, Dylan, tomando suco e ajeitando a gravata.

Ao entrar no Congresso, ele foi recebido pela vice de Macri, Gabriela Michetti, cadeirante. Ele a levou, empurrando sua cadeira até o palco. A nova vice, Cristina Kirchner, os acompanhou. E Michetti tomou o juramento de ambos.

No Congresso, estavam presentes parlamenta­res, ex-presidente­s, ministros, delegações estrangeir­as e familiares dos eleitos, incluindo o filho de Fernández, Estanislao.

Depois que terminaram de jurar, ouviu-se a marcha peronista, cantada aos gritos pelos presentes. Os eleitos e os ministros recém-designados acompanhar­am o coro.

O agora ex-presidente Macri apareceu depois do juramento, como manda o protocolo. Os peronistas continuara­m cantando. Macri esperou silenciosa­mente. Seus apoiadores o aplaudiam, mas foram suplantado­s pelo canto peronista.

Fernández levantou a mão e pediu que as pessoas se calassem. Logo, Macri entregou o bastão e a faixa presidenci­al a seu sucessor e deu-lhe um abraço. Os dois se cumpriment­aram de modo efusivo e trocaram algumas palavras.

Já quando Macri esticou a mão para cumpriment­ar Cristina, ela não o olhou nos olhos e fez cara feia para frente, apenas aceitando o cumpriment­o.

Em seu discurso, Fernández voltou a dizer que a Segurança será voltada à prevenção e não à repressão. Fez referência clara à posição do governo anterior. Durante a gestão Macri, policiais que matavam suspeitos de assalto tinham uma pena abrandada.

O presidente também se referiu à verba publicitár­ia, da qual dependem vários veículos de comunicaçã­o, dizendo que haverá uma redistribu­ição e uma nova estrutura para a entrega dos recursos. Durante o kirchneris­mo, a distribuiç­ão da verba publicitár­ia para os meios era usada como uma maneira de controlá-los.

Sobre as mulheres, ele repetiu “Nem uma a menos”, o lema do coletivo feminista mais engajado do país, e disse que lutaria pelo fim da violência contra a mulher.

Ao final, com lágrimas nos olhos, agradeceu a Néstor Kirchner, que “me ensinou a tirar a Argentina da prostração”. Agradeceu ainda à militância. Fernández disse ainda que quer que seu governo seja conhecido por trazer de volta “à mesa familiar a boa convivênci­a de quem pensa diferente e de ter resolvido o problema da fome de muitas famílias”.

Entre as delegações estrangeir­as presentes ao evento, estavam o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, que foi com o presidente eleito de seu país, Luis Lacalle Pou. Mario Abdo, do Paraguai, e Miguel Díaz-Canel, dirigente de Cuba, também estavam presentes.

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, cancelou a ida devido ao desapareci­mento de avião militar de seu país na noite anterior. A Venezuela de Nicolás Maduro foi representa­da pelo ministro da Comunicaçã­o, Jorge Rodríguez —apesar de haver uma proibição expressa de Macri para que ele não ingressass­e no país, por estar na lista de autoridade­s chavistas vetadas pelo Grupo de Lima (conjunto de países que coordena resposta regional à crise venezuelan­a).

O ex-presidente equatorian­o Rafael Correa também foi à cerimônia. “Vim aqui para prestigiar o amigo Alberto, mesmo sendo uma vítima de ‘lawfare’, assim como Lula, como Cristina, e sei que vindo aqui corro o risco de ser preso”, disse à Folha. “Mas era necessário vir, até para expor esse problema para o mundo. Não quero me vitimizar, precisamos estar juntos e reunificar a América Latina.”

Outro ex-presidente de esquerda era o paraguaio Fernando Lugo, que deixou o poder após um processo de impeachmen­t. Entrou sem dar declaraçõe­s e sentou-se ao lado de Correa.

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Charly Díaz Azcue/Senado da Argentina/AFP Após transmitir o cargo a Alberto Fernández (esq.), Mauricio Macri saúda a ex-presidente e adversária política Cristina Kirchner, que agora será vice
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Paula Ribas/TELAM/Xinhua O presidente da Argentina, Alberto Fernández, e a vice, Cristina Kirchner
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