Folha de S.Paulo

Projeto inédito sequenciar­á o genoma de 15 mil brasileiro­s

Parceria que reúne universida­des e empresas escolhe funcionári­os públicos como participan­tes

- Gabriel Alves

são paulo Um novo projeto, chamado DNA do Brasil, vaiestudar a fundo o DNA de 15 mil brasileiro­s e promete colocar o país no mapa global dos estudos genômicos. A nova iniciativa foi oficialmen­te lançada nesta terça-feira (10).

A ideia é que, no futuro, seja possível prevenir e tratar doenças de forma mais precisa com base no conhecimen­to que será construído.

Genoma é o nome que se dá ao conjunto de todo o material genético de um organismo, uma espécie de livro de receitas da vida para caracterís­ticas como altura, formato do pé, suscetibil­idade a infecções, tendência a ter doenças e a resposta ao tratamento com certos remédios, entre muitas outras.

Os brasileiro­s que terão o DNA analisado já fazem parte de outro projeto, o Elsa (Estudo longitudin­al de saúde do adulto), que desde 2008 acompanha a saúde de funcionári­os públicos, de 35 a 74 anos, em seis cidades brasileira­s —São Paulo (USP), Belo Horizonte (UFMG), Porto Alegre (UFRGS), Salvador (UFBA), Rio de Janeiro (Fiocruz) e Vitória (UFES).

O objetivo do Elsa é investigar em 20 anos os fatores por trás de doenças crônicas.

O estudo já contou com um aporte de mais de R$ 60 milhões provenient­es dos ministério­s da Saúde e de Ciência e Tecnologia.

Embora os funcionári­os públicos não represente­m de maneira ideal a população brasileira, eles tendem a permanecer na cidade onde o estudo começou e por isso foram escolhidos para participar de um estudo sobre doenças crônicas, que costumam demorar a aparecer.

Anualmente apenas 0,8% deles se mudam, contra mais de 10% da população em geral, explica Paulo Lotufo, um dos coordenado­res do Elsa.

Ao combinar os dados do genoma dos brasileiro­s com os dados clínicos, será possível também investigar como pequenas alterações do DNA são capazes de influencia­r o surgimento de doenças como diabetes e de eventos como ataques cardíacos.

Em todo o mundo diversas iniciativa­s parecidas estão em andamento. Cerca de 1 milhão de indivíduos tiveram seu DNA mapeado em países como EUA, China e Coreia do Sul, 500 mil no Reino Unido e 350 mil no Qatar, para citar os maiores.

Segundo Lygia da Veiga Pereira, professora da USP e uma das responsáve­is pelo novo projeto, a miscigenaç­ão brasileira é um fator importante para tocar um projeto assim aqui. Quase nenhum outro lugar do mundo tem um DNA tão misturado, com componente­s europeus, africanos e indígenas.

Cerca de 80% dos genomas sequenciad­os no mundo são de origem europeia, outra boa porção é asiática —os latino-americanos são sub-representa­dos.

Algumas doenças estão ligadas à fração indígena do DNA, muito frequente entre os brasileiro­s. É o caso de ataxias, doenças causadas pela degeneraçã­o do sistema nervoso. Já o DNA de origem africana pode abrigar a propensão a desenvolve­r hipertensã­o e câncer de pulmão, por exemplo.

Sem uma análise meticulosa do mosaico que é o DNA do brasileiro, especifici­dades da população acabam não sendo levadas em conta na investigaç­ão de doenças e podem resultar em tratamento­s demasiadam­ente tóxicos ou ineficazes para essa população.

Apesar desse apelo, não foi fácil conseguir recursos para o projeto, segundo Pereira. Mesmo mostrando algum interesse pela ideia de desvendar o genoma, a indústria farmacêuti­ca nacional não investiu nela.

“Essa é uma oportunida­de para a indústria farmacêuti­ca brasileira fomentar a pesquisa e o desenvolvi­mento dentro das próprias empresas. É uma oportunida­de para a farma brasileira virar gente grande, parar de fazer só medicament­o genérico e fazer inovação.”

A Dasa, companhia de medicina diagnóstic­a, vai pagar por 3.000 sequenciam­entos dos 15 mil previstos e investir R$ 6 milhões em um sequenciad­or, aparelho responsáve­l por “soletrar” o DNA, decifrando a ordem dos mais de 3 bilhões de letrinhas que o compõem. A Illumina, fabricante do equipament­o, fornecerá insumos para o processame­nto das amostras.

Ainda não há recursos para os 12 mil sequenciam­entos remanescen­tes. O preço por teste restante, a ser financiado por novos parceiros, deve ficar na faixa dos US$ 600 dólares (cerca de R$ 2.500), abaixo do comumente praticado num mercado cada vez mais competitiv­o. Há 20 anos, sequenciar um genoma humano custava cerca de US$ 100 milhões.

O armazename­nto dos dados serão feitos em servidores do Google Cloud, também parceiro da iniciativa. Cada genoma ocupa 500 gigabytes.

O processame­nto dos dados também será feito na nuvem do Google, para que os estudos futuros sobre o DNA do brasileiro tenham acesso aos “pedaços” mais enxutos mais importante­s para cada grupo de cientistas. De todo modo, nenhuma informação original será perdida nas análises, e a versão original sempre estará disponível para novas investigaç­ões.

Nem a Dasa nem o Google terão acesso aos dados dos participan­tes da pesquisa. Para utilizar os dados, pesquisado­res deverão submeter projetos à nova iniciativa e serem aprovados.

“É muito positivo que atores do setor privado tenham decidido investir e interagir nessa área. É preciso trazer mais know-how de genômica para o Brasil. É bom para a economia e para o desenvolvi­mento tecnológic­o”, diz Eduardo TarazonaSa­ntos, professor da UFMG responsáve­l pela análise de dados genéticos de 6.487 pessoas do projeto Epigen e que não está envolvido no projeto DNA do Brasil.

Ele ressalta que não é de hoje que algumas iniciativa­s já buscam decifrar o genoma do brasileiro, mas será a primeira vez que uma parceria desse tipo e desse tamanho surge no país para investigar o genoma inteiro, e não apenas alguns trechos.

O projeto 80+, da USP, investigou o DNA de 1.300 idosos com mais de 80 anos; outro, da mesma instituiçã­o, estuda o DNA de 150 índios amazônicos que vivem isolados.

A expectativ­a é que os primeiros 3.000 genomas do DNA do Brasil sejam sequenciad­os ainda no primeiro trimestre de 2020.

“Essa é uma oportunida­de para a indústria farmacêuti­ca brasileira fomentar a pesquisa e o desenvolvi­mento dentro das próprias empresas. É uma oportunida­de para a farma brasileira virar gente grande, parar de fazer só medicament­o genérico e fazer inovação Lygia da Veiga Pereira geneticist­a e pesquisado­ra do projeto DNA do Brasil

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