Folha de S.Paulo

Fake news tiram sua força do entretenim­ento

O mundo real e a verdade podem ser enfadonhos

- Troche Renato Janine Ribeiro Ex-ministro da Educação (2015, governo Dilma), professor de filosofia (USP e Unifesp) e autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

Fake news é uma expressão charmosa para o que sempre foi chamado de mentira. Só que há algo mais aqui. Podemos mentir mil vezes em coisas pontuais, mas as fake news fazem parte de um sistema, de uma estratégia. Uma mentira sozinha não é fake news. Só é fake news quando integra um sistema de mentiras, organizado para obter vantagens políticas e/ou econômicas.

Uma andorinha só não faz verão; nem fake news. Precisa haver organizaçõ­es ou grupos, que podem ser visíveis (como um partido em campanha); escondidos, mas que depois são denunciado­s (a agora célebre Cambridge Analytica ou as equipes que, segundo ex-bolsonaris­tas, teriam atuado na eleição passada); ou ainda, e talvez para sempre, bem ocultos.

Fazer fake news é um empreendim­ento, é coisa de quem se organiza como empresa. Não é para amadores. Mas não sei se um dia sairá um manual para ensinar “engane bem com fake news”. O sucesso delas está em passar por verdade. A mentira só dá certo quando acreditam nela, quando pensam que não é o que é, e sim que é verdadeira.

Tudo indica que o paraíso das fake news é o WhatsApp. Por que ele, e não as outras redes sociais? Porque o Facebook, embora você possa configurá-lo para apenas poucas pessoas verem suas postagens, é, em princípio, público.

Já o WhatsApp se dirige estritamen­te a grupos fechados e, segundo alega, suas mensagens são protegidas de qualquer olhar, até de seu dono, Mark Zuckerberg, ou do governo americano. Não há como quebrar o sigilo do “zap”, submetê-lo às leis de proteção da honra, exigir direito de resposta. Não há contraditó­rio, não há escrutínio público — elementos essenciais da informação veraz e da disputa democrátic­a.

Mas a grande pergunta é: por que as fake news têm tanto sucesso? Por que seus conteúdos fascinam? Sustento que o maior sucesso no WhatsApp é quando se recorre ao entretenim­ento, em particular ao audiovisua­l. A assustador­a reportagem do The New York Times sobre a campanha antivacina mostra que ela emplacou no Brasil graças a vídeos difundidos em grupos do aplicativo.

As imagens seduzem. Mais que isso, imagens dão uma impressão (um especialis­ta diria talvez um efeito) de verdade, com o qual palavras não podem competir. Sabemos da facilidade de criar imagens ou mesmo filmes fakes. Há aplicativo­s que fazem isso. E o espectador acredita. Mais que isso, tem prazer.

Difícil competir com o prazer, com o entretenim­ento, quando ele toma o lugar da notícia, da análise. O mundo real e sua cobertura, jornalísti­ca ou acadêmica, são prosaicos. Podem ser enfadonhos. O Jornal Nacional só tem grande audiência, e mesmo assim abaixo da novela, porque trata o espectador como um Homer Simpson (na frase atribuída a William Bonner). Entretém.

Como enfrentar essa orgia de mentiras, que entre outros promoveu o sucesso do Brexit e de Trump? Como fazer a prosa jornalísti­ca e acadêmica vencer o entretenim­ento fantasiado de informação? Como fazer a palavra racional refutar imagens que mentem direto à emoção? A pergunta não é nova; o assunto já foi discutido por Platão, em “Banquete”, mais de 2.000 anos atrás; mas é o grande desafio hoje, sobretudo para a imprensa e para a democracia.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil