Folha de S.Paulo

O PIBB que se exploda

Cresciment­o econômico de qualidade requer âncora civilizató­ria

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

O cresciment­o de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB) no trimestre despertou entusiasmo em pibólatras do governo e do mercado. Por autointere­sse ou cegueira voluntária, continuam sem ter muito a dizer sobre o Produto Interno da Brutalidad­e Brasileira (PIBB). Este avança sob o ímpeto vingativo do bolsonaris­mo.

O PIBB registra a cota de incivilida­de da nossa vida real: recordes mundiais em homicídios, crimes de ódio, encarceram­ento, violência estatal e social. Ilustra o Brasil que castiga, mata e deixa morrer; que intimida, lincha e esculacha; que vigia, delata e persegue; que reprime a liberdade e a diferença. É um índice que ainda não aprendemos a expressar na linguagem econômica, dada a intangibil­idade e incomensur­abilidade de suas variáveis.

Essa difícil contabilid­ade busca estimar nosso déficit em direitos, tolerância cívica e institucio­nalidade democrátic­a. A nossa dívida constituci­onal, enfim. A expansão do PIBB se constata numa sucessão de fatos recentes. Não são casos anedóticos isolados, nem mera continuida­de de padrões históricos. Essa onda é distinta e pertence à “nova era”.

As vítimas do PIBB são sujeitos que habitam as periferias da sociedade (negros, mulheres, homossexua­is, pessoas com deficiênci­a, indígenas), da geografia (subúrbios, favelas, prisões, zonas rurais, florestas) e da política brasileira­s (professore­s, cientistas, artistas, militantes).

Dos meninos de Paraisópol­is e do Complexo do Alemão aos índios da Amazônia; do disquedenú­ncia de professore­s à demissão de cientistas por pesquisas inconvenie­ntes; da autorizaçã­o para a polícia atirar em protestos à tortura das prisões; da exclusão de pessoas com deficiênci­a da escola regular e do mercado de trabalho, o bolsonaris­mo faz recrudesce­r, com método renovado, o vasto repertório do PIBB.

A pibolatria permanece indiferent­e e sem crises de consciênci­a. Na melhor das hipóteses, entende que o cresciment­o do PIB mitigará o PIBB por força da natureza. Na pior, sugere o AI-5. A indignação moral e argumentos abstratos sobre justiça não serão suficiente­s para reagir a esse modo de entender os problemas do país.

Há forma mais objetiva e pragmática de apontar o erro. O PIB é indicador inapropria­do de performanc­e econômica, de progresso e de bem-estar. Assim já concluíram não só Nobéis de economia, mas o Banco Mundial, o Fórum Econômico Mundial, o FMI, a revista The Economist etc. Sob a perspectiv­a do PIB, não foi possível explicar a crise de 2008. Muito menos a emergência do populismo autoritári­o ao redor do mundo.

A pibolatria esconde que o PIB é só um meio, não um fim, e que esse meio não consegue captar bem-estar e qualidade de vida. O truque da pibolatria é converter esse meio que não mede a coisa certa num fim em si mesmo. Cresciment­o econômico de qualidade requer âncora civilizató­ria. Precisa saber como cresce e quem ganha com isso.

Desempenho econômico e desempenho constituci­onal devem caminhar juntos. Do ponto de vista do interesse público e de longo prazo, revigoram-se mutuamente. O atalho da degradação institucio­nal revela a força de interesses privados de curto prazo. Pesquisas econômicas vêm apontando para essa correlação entre respeito a direitos e cresciment­o, apesar dos casos que fogem ao padrão, como o chinês.

Não é preciso ser gênio econômico para fazer o PIB crescer junto com o PIBB. Essa é uma tarefa elementar, de cartilha. Elementar e produtora de imenso sofrimento e malestar que depois cobrarão sua fatura. No Índice de Desenvolvi­mento Humano (IDH), para tomar um exemplo alternativ­o ao PIB, o Brasil está caindo.

Bolsonaro é um inovador. Em vez de jogar o PIBB para debaixo do tapete e disfarçar a mediocrida­de política, como outros fizeram, investe no contrário: a explosão do PIBB foi sua grande promessa. Ele não só a cumpre como celebra o resultado com orgulho.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil