Folha de S.Paulo

Bolsonaro, geringonça da extrema-direita

Apesar de tumultos, há um arranjo político até aqui estável na política e na economia

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA)

Pode parecer doido quem diga que houve alguma estabilida­de neste quase primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mas há um arranjo político que dura desde março, que evitou o desgoverno total, o desarranjo geral no Congresso e os piores arreganhos autoritári­os ou disparates jurídico-administra­tivos.

Além do mais, não houve choque político da dimensão vista neste país pelo menos desde 2013, a cada ano. Mesmo a avaliação de Bolsonaro mantém-se praticamen­te estável desde abril, embora tenham se deteriorad­o as expectativ­as de sucesso de seu governo.

As altercaçõe­s e os ultrajes quase diários dão a impressão de movimento caótico. Avanços e recuos em medidas e leis demonstram que o governo carece de coordenaçã­o político-administra­tiva, pelo menos segundo o padrão geralmente aceito de planejamen­to racional.

Caíram dois ministros palacianos que pareciam do núcleo íntimo permanente de Bolsonaro (Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz). O “núcleo militar”, que daria estrutura e funcionali­dade ao governo, como se especulava bobamente (aqui inclusive), foi desfeito em menos de seis meses; vai encolher ainda mais até março, com mais substituiç­ões de ministros oficiais-generais.

Bolsonaro cumpriu até aqui e de certo modo a promessa de não montar um governo baseado em coalizão parlamenta­r. Isto é, não trocou cargos por bancadas aliadas no Congresso; a ideia tola de governar com “bancadas temáticas” (bala, boi, Bíblia) era isso mesmo, sem fundamento e se esfumaçou.

O presidente de resto hostiliza, hoje um pouco menos, o responsáve­l por aprovar reformas sem as quais a economia do país e seu governo estariam em convulsão, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Seu governo bate recordes de derrotas em votações parlamenta­res. Seu partido se dissolveu em menos de nove meses de governo, em meio a uma chacrinha sórdida, com o que Bolsonaro não se incomodou muito, se tanto, digase de passagem.

De que estabilida­de se trata, então?

A elite política e econômica acomodou Bolsonaro. O que parecia uma extravagân­cia passageira no início do ano, o “parlamenta­rismo branco”, firmou-se até aqui, embora sabe-se lá o que será desse arranjo até março, quando o Congresso voltar das férias de verão, depois de consultar as “bases”, quando talvez já se tenha alguma ideia de se a recuperaçã­o econômica “agora, vai”.

Mas o governo do premiê acidental Maia funciona regularmen­te. Discute e organiza os projetos da Economia. Contém os avanços autoritári­os de decretos e projetos de Bolsonaro. As lideranças do centrão, Maia inclusive, arrumaram um jeito de acalmar parlamenta­res, com o pagamento de emendas e nomeações para cargos de terceiro escalão ainda rendosos em termos políticos.

Nesse parlamenta­rismo branco ou encardido, o presidente mantém certos poderes, como em alguns de seus similares formais. Por exemplo, o poder de fazer guerra cultural (na educação, na cultura), o de aparelhar a máquina com esbirros ideológico­s alucinados, de intervir aos poucos nos órgãos de controle (Procurador­ia-Geral) e de tocar a política externa.

Difícil dizer que não se trata de arranjo funcional, que contribuiu para estabiliza­r a economia ou evitar recaídas ou desastres. Essa geringonça de extrema-direita, de resto, cria uma base estável para Jair Bolsonaro tocar o seu principal projeto, que é “quebrar o sistema” político e as instituiçõ­es de controle democrátic­o.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil