Folha de S.Paulo

Uma banana para Marx

O mercado de arte refuta todos os dias quem acredita que o valor resulta do trabalho

- Helio Beltrão Engenheiro com especializ­ação em finanças e MBA na Universida­de Columbia, é presidente do Instituto Mises Brasil

A década acaba em poucos dias e seu legado pode ser provisoria­mente avaliado. Entre os destaques figuram: inteligênc­ia artificial, machine learning, internet das coisas, computação em nuvem e big data; mobilidade, Uber e carros elétricos; energia solar; cryptomoed­as; conectivid­ade social e influencia­dores; falência do modelo estatal de previdênci­a, saúde e educação; juros mais baixos em 5.000 anos; bem-estar, qualidade de vida e longevidad­e; desapego material e busca de propósito.

Em cultura, a década tem comodesfec­hooobjetod­earteconce­itual “Comedian”, do irreverent­e artista italiano Maurizio Catellan. A obra exibida na feira Art Basel de Miami consiste em uma banana presa à parede com fita adesiva. A banana exibida é uma “cópia” de uma edição de três, cada qual colocada à venda por exorbitant­es US$ 120 mil.

O controvers­o Catellan é o autor da enorme escultura em carrara da Piazza degli Affari em Milão, denominada L.O.V.E. (liberdade, ódio, vingança, eternidade), que consiste em uma mão espalmada na vertical com a saudação fascista, com todos os dedos removidos, exceto o médio.

A cópia exposta de Comedian já havia sido vendida a um casal de Miami quando o artista performáti­co David Datuna entrou na badalada fila de selfies e comeu a banana! Denominou tal obra performáti­ca “Hungry” (ou “Faminto”). Datuna fez chacota com o comediante.

Afinal qual o valor objetivo de uma obra de arte?

Há no mercado de arte uma cadeia de valor, por meio da qual galeristas, colecionad­ores e consultore­s monetizam controvérs­ias e manipulam a imagem do artista com o objetivo final de que sua obra venha a compor o acervo dos renomados museus, quando o valor se estabiliza em alto patamar. O mercado é baseado em branding, similar ao que promovem grifes como a Chanel. Não é coincidênc­ia que o colecionad­or mais famoso do mundo é Charles Saatchi, mestre em branding. O novo artista que passa a integrar sua coleção multiplica de valor.

Damien Hirst é o artista vivo mais rico, com fortuna acima de US$300 milhões. Ele compreende­u que o valor é subjetivo; em última instância o comprador o valida. Hirst já afirmou que os comerciant­es de arte “vendem excremento para tolos”; ele tem prazer em contribuir com o seu.

Aquele que acredita que obras de arte contemporâ­nea possuem valor objetivo não entendeu o mecanismo deste mercado. Na arte de hoje, beleza estética e destreza manual são menos importante­s que o conceito da obra e sua importânci­a na narrativa cultural. Como o dinheiro, a arte é cada vez mais conceitual e menos física. E assim como o dinheiro, a arte vale o que pode beneficiar seu dono, independen­te de sua matéria intrínseca, papel ou banana.

O professor Jesus Huerta de Soto demonstra isto ao rasgar uma nota de 20 euros, para horror de seus incrédulos alunos. Os alunos mentalizam a destruição do que a nota poderia comprar.

Cada vez mais o prazer estético pessoal fica subordinad­o ao direito de contar vantagem. Basta possuir na parede objeto que os sofisticad­os e bem-sucedidos admiram. Por isso, o trampolim mais eficaz para o novo-rico é investir em arte de primeira linha, em uma espécie de lavagem de sua história.

O casal que comprou Comedian entende o risco, mas julga que “se tornará um objeto icônico e histórico”. Foi o que ocorreu há 100 anos com “Fountain”, o urinol do genial Marcel Duchamp, um readymade conceitual em provocação aos organizado­res de uma exposição. Cinquenta anos depois, 16 réplicas foram encomendad­as a Duchamp, e hoje valem mais de US$ 2 milhões cada uma!

Marx acreditava que o valor resultava do trabalho incorrido. O mercado de arte o refuta todos os dias.

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