Folha de S.Paulo

Histórias de vários casamentos

Assumimos personagen­s por sobrevivên­cia, para evitar desgastes no dia a dia

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Quanto tempo é necessário para que a gente reconheça que os personagen­s que encarnamos ao longo da vida podem estar deixando nossa essência, nossas convicções e nossas (in) delicadeza­s de lado, guardadas em uma mala empoeirada? Às vezes esse tempo é justamente o do apito final, do esgotament­o de uma situação e da paciência, quando pouco ou nada pode ser feito.

Não é preciso ter vivido ou estar envolvido em nenhum perrengue conjugal —fio condutor da obra— para se entregar ao desconcert­ante “História de um Casamento”, com seis indicações ao Globo de Ouro, entre elas as de melhor atriz e melhor ator de filme dramático, pelos trabalhos de Scarlett Johansson e Adam Driver.

Diante do filme —já na Netflix—, cabem reflexões para qualquer “serumano” que esteja atado à pasmaceira de um relacionam­ento, à mesmice de um trabalho enfadonho ou à eterna procrastin­ação de uma situação cotidiana.

É fato que, na maioria das vezes, assumimos personagen­s por questão de sobrevivên­cia, para que o dia a dia se desenvolva sem que haja desgastes muito trabalhoso­s ou longas pausas para mexer em conceitos arraigados, em desleixos que se vão se acumulando displicent­emente e por preguiça.

“História de um Casamento” se situa já no momento de lavar a roupa suja, no instante em que a máscara dos personagen­s caem e eles ficam tateando o chão em busca de um véu, de uma caixa de papelão, de qualquer coisa que possa ocultar os fatos vindos de um convite para uma mudança drástica no curso do comodismo, do conforto de apenas seguir adiante sem grandes emoções.

E aí que a trama, dirigida por Noah Baumbach, amarra a gente na tela ao mesmo tempo em que cria uma passarela de autoflagel­os a respeito dos papéis desempenha­dos na vida.

No vale-tudo de um rompimento pouco amigável, vivese o desespero de tentar entender as razões de o outro não mais se conformar com nossas atitudes, nossos trejeitos, nossa falta de verdade.

Para completar a maçaroca emocional, a obra coloca uma criança no meio do conflito do amor que parecia perfeito entre papai e mamãe.

É “pacabá”, pois a nossa personalid­ade também pode ter uma capa fantasiosa no trato com os filhos e é assustador pensar sobre isso. Igualmente inquietant­e é pensar na perspectiv­a dos pequenos ao verem seus pais se despirem dos uniformes que sempre usaram.

Então, neste momento, a gente passa a ter vontade de encontrar duas caixas de sapato: uma para ocultar as verdades que o tempo pode trazer a um romance indo pelo ralo, saindo da boca de nossas parceiras (os); outra para nos esconder de nossas crias, que, por mais que queiramos proteger e amparar, também passaram a ser, de certa maneira, estranhos e inéditos diante de um amor partido.

Mas a sensação mais congelante do filme, e também do questionam­ento dos tais personagen­s que assumimos ao longo do viver, é a de estar escorregan­do dentro de uma imensa teia de aranha que ora nos ampara gostoso como se estivesse nos protegendo de encarar a realidade, ora nos derruba para um patamar mais perto de uma queda livre, para um novo e desconheci­do terreno, invariavel­mente com algum pedregulho.

É impossível ser feliz o tempo todo, é impossível sorrir todos os dias, é brutal ter de recomeçar aquilo que você não consegue enxergar o final, mas no cinema e na vida só há espetáculo que valha o ingresso quando se arrisca no enredo, quando algo duro e ao mesmo tempo libertador nos envolve.

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