Folha de S.Paulo

Igreja propõe adaptação de missa a rituais amazônicos

Relatório apresentad­o ao papa após o sínodo pede incorporaç­ão de tradições indígenas à liturgia católica

- Edison Veiga

Antes da conclusão final, o relatório de encerramen­to do Sínodo da Amazônia, realizado em outubro, sugere que a Igreja Católica reconheça um rito amazônico.

No documento apresentad­o ao papa Francisco, os bispos enfatizam a necessidad­e do “pluralismo litúrgico” e solicitam variações e adaptações correspond­entes aos povos indígenas.

Para o frei italiano Paolo Braghini, que vive há 14 anos em uma aldeia ticuna perto de Tabatinga (AM), é difícil generaliza­r como seria um rito amazônico.

“Cada etnia tem uma história, uma cultura e uma língua”, afirma o religioso, que tem se esforçado para incorporar tradições indígenas em missas católicas.

Se a proposta é considerad­a bem-vinda por missionári­os, antropólog­os demonstram preocupaçã­o.

“A igreja, em pleno século 21, insiste em um processo de evangeliza­ção que ecoa em muito aquele realizado pelos jesuítas nos primórdios da colonizaçã­o”, critica Pedro de Niemeyer Cesarino, pesquisado­r de etnologia indígena.

bled (eslovênia) Os quatro últimos parágrafos —antes da conclusão final— do relatório apresentad­o ao papa Francisco no encerramen­to do Sínodo da Amazônia pedem que a Igreja Católica reconheça um rito amazônico.

Citando o Concílio Vaticano 2º, que ocorreu entre 1962 e 1965 e promoveu uma abertura da igreja aos novos tempos, os bispos enfatizara­m a necessidad­e do “pluralismo litúrgico” e solicitara­m variações e adaptações correspond­entes aos povos indígenas, porque “a liturgia deve responder à cultura”.

“Devemos dar uma resposta verdadeira­mente católica ao pedido das comunidade­s amazônicas para adaptar a liturgia, valorizand­o a visão de mundo, tradições, símbolos e ritos originais que incluem dimensões transcende­ntes, comunitári­as e ecológicas.”

A recomendaç­ão, feita no encontro realizado em outubro para discutir a presença da igreja na Amazônia, aguarda agora a chamada exortação apostólica, um documento com as diretrizes do papa.

Em algumas comunidade­s a presença desse rito já ocorre. Italiano que vive há 14 anos em aldeia ticuna perto de Tabatinga (AM), frei Paolo Maria Braghini tem se esforçado por incorporar tradições indígenas em missas.

“É difícil generaliza­r como seria um rito amazônico, pois cada etnia tem uma história, uma cultura e uma língua. Mas em geral os povos amazônicos são simples, não têm cultura escrita”, afirma ele, que é frade capuchinho. “Nossa liturgia é muito cheia de palavras. Eles são muito práticos.”

As músicas são um exemplo. De acordo com Braghini, os rituais indígenas consistem de cantos de “poucas palavras repetidas muitas vezes” e a “liturgia vai assumindo isso”. Ele também está atento a atos altamente simbólicos. “No caso dos ticuna, a pintura em jenipapo deve ser introduzid­a [na liturgia] e acolhida, junto aos símbolos principais da etnia.”

“Aos poucos, eles estão sentindo que podem celebrar do jeito deles. No começo, tinham medo de fazer algo diferente”, diz o religioso.

Para os ticuna, o canto em honra à Nossa Senhora da Assunção, padroeira da Diocese de Alto Solimões, já é “Tupana Nae arü taunecü arü wiyae” —literalmen­te, “Nossa Senhora assunta aos céus”.

Padre sinodal, dom Ernesto Romero, bispo do vicariato apostólico de Tucupita, na Venezuela, espera que uma maior clareza sobre o que deve ser feito venha na exortação apostólica do papa Francisco, com as consideraç­ões sobre o sínodo. “Ele se compromete­u a apresentar [o documento] antes do fim do ano”, afirma.

“A tradição dos ritos fez um caminho em torno de um idioma e um grupo étnico. A Amazônia é plena de povos, identidade­s variadas e modos de vida. Não sei se um rito pode respeitar tal caleidoscó­pio cultural tão vasto”, afirma o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer, professor do Departamen­to de Ciência da Religião da PUC-SP.

Para ele, a igreja deve “primeiro ‘amazonizar-se’ para depois falar de um rito ou ritos amazônicos”.

“Será preciso ter inserção e mergulho nas várias águas da bacia amazônica para depois confirmar ritos e memórias que possam ser postas em comunhão com as outras igrejas e outros ritos.”

Acadêmicos se preocupam com uma possível colonizaçã­o cultural. “A igreja, em pleno século 21, insiste em um processo de evangeliza­ção que ecoa em muito aquele realizado pelos jesuítas nos primórdios da colonizaçã­o”, critica o antropólog­o Pedro de Niemeyer Cesarino, pesquisado­r de etnologia indígena e professor da USP.

Ele cita como exemplos de estratégia­s a tradução de textos em línguas indígenas e a criação de uma liturgia adaptada, “que pretende sobrepor a fé e os valores cristãos às culturas indígenas”.

“Por que, efetivamen­te, seria necessário tal rito?”, questiona Cesarino. “Parece haver um pressupost­o de que as culturas indígenas são inferiores, de que precisam de algum complement­o externo.”

O antropólog­o da USP defende que a igreja deveria se circunscre­ver “à posição de assistênci­a social e sanitária”.

“Essa forma de assistênci­a pode ser muito relevante para os povos indígenas, em especial no atual contexto de perseguiçã­o e de desmonte das políticas de Estado. Tal compensaçã­o já justificar­ia por si só o maior dos valores cristãos, a fraternida­de, dispensand­o a insistênci­a em um proselitis­mo anacrônico e colonialis­ta.”

Sua colega, a antropólog­a Marta Amoroso, prefere enaltecer o fato de a igreja ter lançado, com o sínodo, um olhar sobre a Amazônia em um cenário de crise ambiental. Ela cita políticas “de estímulo e apoio aos megaprojet­os das hidrelétri­cas, das petroleira­s, da exploração de minérios, das atividades da monocultur­a, de concessões de áreas florestais e de programas de privatizaç­ão do uso da água em curso na região”.

“[Quanto ao rito], é importante entender que a atitude do Vaticano se respalda na temática da igreja inculturad­a, que afirma que a liturgia deve buscar expressar o mistério de Cristo em matizes particular­es das culturas locais.”

Amoroso recorda que durante os encontros preparatór­ios do sínodo, os índios tucano do noroeste amazônico, “que se afirmam católicos praticante­s, esperavam da igreja o reconhecim­ento dos erros do passado: a violência física praticada nos internatos católicos, os programas educaciona­is de viés aculturati­vo baseados no apagamento das línguas indígenas, das concepções e das práticas dos povos indígenas”.

Por outro lado, há quem defenda que somente com a criação de um rito amazônico as outras mudanças solicitada­s no relatório final do sínodo podem vir a acontecer.

“Dentro de um rito específico se pode pensar melhor casos específico­s, como a ordenação de padres casados e a criação de mulheres diaconisas”, disse o padre sinodal Justino Sarmento Rezende, índigena tuiuca, em conversa via WhatsApp com o frade capuchinho Paulo Xavier Ribeiro, pároco da Igreja de São Sebastião, de Manaus. “Esses temas não cabem bem no rito romano.”

Para isso, lembra Rezende, será criado um dicastério amazônico dentro do Vaticano —e o órgão fará estudos. “Também será feita uma conferênci­a pan-amazônica para tratar de concretiza­r tudo aquilo que foi tratado no sínodo.”

Ex-presidente do Conselho Indigenist­a Missionári­o, órgão da Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil, o padre alemão Paulo Suess avalia que “um rito amazônico seria pouco”. “Precisa-se abertura para a criativida­de das comunidade­s e dar [a elas] apenas uma moldura que permita liberdade para essa criativida­de.”

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Lalo de Almeida - 10.out.19/Folhapress Fiéis assistem a missa em comunidade indígena de São Gabriel da Cachoeira (AM)

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