Folha de S.Paulo

Individual­ismo dará lugar ao coletivo e à religiosid­ade

Para o sociólogo francês, o racionalis­mo e o individual­ismo darão lugar à emoção e ao coletivo, que vê como forma de espiritual­idade

- Francesca Angiolillo

Para o sociólogo francês e criador do termo “tribos urbanas”, os jovens já não seguem o tripé individual­ismo, racionalis­mo e progressis­mo e não se identifica­m com o materialis­mo, seja da esquerda ou da direita. Novas formas de compartilh­amento são elementos religiosos, diz.

“Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o outro que me cria e há nisso uma dimensão religiosa. Estamos passando da era do eu para a do nós

são paulo “Não sou cristão. Mas, desde há muito, considero que não é possível compreende­r a vida social se não a partir desse aspecto religioso”, diz Michel Maffesoli. O esclarecim­ento é necessário para quem comece a conhecer a obra do sociólogo francês por “A Palavra do Silêncio” (trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco, Palas Athena, R$ 38, 110 págs.), lançado no Brasil em setembro.

No livro, o professor emérito da Sorbonne, onde fundou e dirige o Ceaq (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), defende a ideia de que uma nova espiritual­idade, que revalorize o rito sobre a palavra, é necessária.

Mas, embora tenha se debruçado sobre a religião ao longo de toda sua carreira, Maffesoli amplia o termo, falando das mais diversas formas de congregaçã­o —como as “tribos urbanas”, termo cunhado por ele.

“Gosto muito de etimologia, religião vem de ‘religare’, religar. Sempre tentei mostrar que só era possível compreende­r a estrutura do ‘viver juntos’ compreende­ndo seus mitos, suas fantasias, tudo o que é seu imaginário. E a religião ocupa um lugar importante nesse imaginário.”

Em passagem por São Paulo para lançar “A Palavra do Silêncio”, Maffesoli falou à Folha sobre as diferentes formas de espiritual­idade e congregaçã­o que vê no cotidiano.

O sr. vem dizendo que nosso século verá um aumento da espiritual­idade. Ela seria como o sr. defende em “O Silêncio da Palavra”, um nexo mais direto, menos racional?

Minha obsessão tem sido, ao longo dos anos, refletir sobre o fato de que estamos passando de uma época moderna a outra que, na falta de termo melhor, chamamos pós-moderna. O que chamamos de modernidad­e começa com o cartesiani­smo; prossegue com a Reforma Protestant­e e se funda, filosofica­mente, no Iluminismo; conforma no século 19, os grandes sistemas sociais; e, no meu ponto de vista, dura até a metade do século 20.

Nesses três séculos e meio, o tripé da vida social é a emergência do individual­ismo, a prevalênci­a do racionalis­mo e a ideia de progressis­mo. As novas gerações não creem mais nesse tripé e privilegia­m a comunidade, o que em outra época chamei “tribo”; não mais o racional, mas o emocional; não mais o progressis­mo, mas o presente.

Para mim isso é a religiosid­ade juvenil. Eles não se reconhecem mais no materialis­mo econômico que se encontra tanto no que resta dos marxismos quanto entre os liberais. Por outro lado há, mais e mais, o apelo do qualitativ­o da existência, o fazer da vida uma obra de arte, dito à moda de Nietzsche. O fato de que não será mais o trabalho o valor essencial; de que coisas muito simples, os compartilh­amentos, as novas formas de solidaried­ade, elementos de generosida­de —elementos que são religiosos.

Parece uma perspectiv­a otimista.

Não gosto desse adjetivo que me atribuem muitas vezes, porque é um qualificat­ivo moral, e não sou moralista. Sou realista. Meu trabalho consiste em ver. É isso a fenomenolo­gia, para usar um termo um pouco mais chique. Sob essa perspectiv­a, muito concretame­nte, vejo que funciona. Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilh­amento de carro, colocação, coworking, “coetc.”. Isso vem do latim “cum”, com. Esse é o elemento empírico. É cada vez mais difícil viver nas megalópole­s, das quais São Paulo é uma expressão; há uma necessidad­e de andar juntos contra a adversidad­e.

O sr. também vem falando, ao longo desses anos, que a emoção vem ganhando terreno sobre um projeto racionalis­ta. Existe uma ligação entre essa prevalênci­a do emocional e a ascensão dos populismos?

A intelligen­tsia —os jornalista­s, os políticos, os acadêmicos— tendem a ver o copo meio vazio. É um problema das elites, desconecta­das do povo, pensar que tudo vai mal. Já deu para compreende­r que eu gosto de ver o copo meio cheio.

Tenho um livro, “Elogio da Razão Sensível”, em que digo que não é o caso de separar a razão da emoção, que é uma questão de “holos”, o todo. Que somos o conjunto. Não pretendo dar à emoção o lugar único, como não quero dar à razão esse lugar. A modernidad­e repousou sobre a ruptura. Tentei mostrar que deve haver essa sinergia.

Para mim, essa perspectiv­a complexa, de complement­aridade, é da ordem da sabedoria popular. E tenho um pouco de medo dessas elites que, agora, vão tachar o povo de populista. Lancei um livro, “La Faillite des Élites” [a falência das elites, em coautoria com Hélène Strohl, recém-publicado na França], no qual tento mostrar que há uma estigmatiz­ação da palavra “populista” porque há uma espécie de incompreen­são dessa sabedoria popular que faz a ligação entre o espírito e o corpo.

Escrevi alguns artigos sobre os “coletes amarelos”, fui até eles ver o que estava acontecend­o e vi que há uma espécie de sabedoria que não se reconhece mais no aspecto racional dos tecnocrata­s, dos políticos de direita ou de esquerda. Mas, ao contrário, há um retorno desse que é o fundamento mesmo da democracia, “demos” [povo].

O sr. já deu como exemplo desse retorno da emoção as manifestaç­ões de jovens no Brasil em 2013. Esses protestos acabaram reunindo aqueles que eram contra a política tradiciona­l. Seguiram-se o impeachmen­t de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. Essa resposta emocional é desejável?

É difícil falar de Bolsonaro. Não sou brasileiro.

Ele está bastante presente no noticiário, mesmo na França.

Bom, vou ter que falar [ri]. O que me impression­a, no mundo todo, é que haja tal distanciam­ento entre as elites e o povo que cause a emergência dessas figuras —além de Bolsonaro, Salvini, na Itália, Trump, nos Estados Unidos,

Boris Johnson, na Inglaterra.

Meu presidente é um homem inteligent­e. Não, é instruído. Tem essa capacidade de dominar as ferramenta­s econômicas e diplomátic­as, mas nenhum contato com o povo. Esse é para mim o perigo. Como disse num artigo, esses democratas não são demófilos [amigos do povo]. Digo aos meus amigos brasileiro­s que têm de se questionar; por que vocês têm essa coisa terrível [ri], por que na França temos o que temos? É preciso ter a humildade de aceitar que não é “culpa do povo”.

Em seu livro, o sr. critica o protestant­ismo, em que a palavra supera o rito e a liturgia. Mais de 30% dos brasileiro­s são evangélico­s. Onde entram essas designaçõe­s religiosas no quadro do retorno à espiritual­idade?

O protestant­ismo foi a marca da modernidad­e e esse protestant­ismo é uma forma muito racionalis­ta de disfarçar o ateísmo.

Costumo dizer que o Brasil é o laboratóri­o da pós-modernidad­e, e também nisso o é. Vemos aqui um afluxo dessas denominaçõ­es, por motivos individuai­s, como sair de vícios, mas também por um sentido de comunidade nada desprezíve­l. Do meu ponto de vista, porém, é um combate de retaguarda. Acho muito mais interessan­te, no quadro brasileiro, o papel que têm o candomblé ou a umbanda. Tenho amigos da minha idade no Brasil, marxistas, que se tornaram pais de santo!

O culto do natural, do ancestral, o retorno ao campo seriam movimentos sociais que denotam uma busca por religação espiritual?

Quanto a esse retorno à “mãe terra” e outras manifestaç­ões, falo de uma “invaginaçã­o do sentido”, por oposição à modernidad­e, em que prevaleceu o falo espermátic­o. O sentido só se compreendi­a pela projeção fálica. Um dos meus livros, “Matrimoniu­m”, tinha como subtítulo “Pequeno Tratado de Ecosofia”. Com “ecosofia” —“oikos”, casa, “sofia”, sabedoria— faço a oposição da ecologia política. É a sabedoria da casa comum. Não se trata do homem mestre e possuidor da natureza de Descartes. É uma religiosid­ade ambiental que atinge uma enormidade de pessoas. As novas gerações, que vão garantir o futuro da sociedade, têm uma sensibilid­ade para esse tema.

Isso nos leva à ativista Greta Thunberg, para alguns uma figura messiânica. Essas figuras são necessária­s hoje?

Pessoalmen­te não gosto dela, acho desagradáv­el, agressiva. Mas o que ela representa é interessan­te. Cada época tem sua figura emblemátic­a, é Durkheim quem diz. A figura emblemátic­a moderna é o adulto sério, racional, produtor e reprodutor. O grande burguês. Uma das minhas hipóteses acerca da pós-modernidad­e repousa na figura de Dionísio, a criança eterna. É interessan­te que ela seja uma representa­ção dessa criança.

O seu livro fala da necessidad­e do silêncio. Mas cada vez mais as pessoas dizem tudo o que pensam. Quando nos manifestam­os nas redes sociais, buscamos uma tribo ou tentamos nos individual­izar?

Auguste Comte —ele era de Montpellie­r, como eu, hoje é pouco lido, mas o li bastante— definia a sociedade e a sociologia por uma fórmula em latim, “reductio ad unum”, redução a um —a unidade do Estado, da identidade. Quando cunhei o termo “tribo” era uma uma provocação para mostrar como havíamos explodido essa unidade e que, de certa forma, já não prevalecer­ia o indivíduo, mas a pessoa plural. “Persona” significa “máscara”, se sou uma “pessoa plural” tenho máscaras. Nas redes sociais, vivem-se essas máscaras. Então, de certa forma, no nível das redes sociais, que é para mim o nível do tribalismo pós-moderno, o que se dá é a aplicação do que diz Arthur Rimbaud: “Eu é um outro”. Não é ou isso ou aquilo, é isso e aquilo. Não deixa de ter uma dimensão religiosa, no sentido de “religare”, de estar em relação com o outro.

No livro, o sr. diz que só existimos pelo olhar do outro. Essa comunhão na alteridade encontra expressão em frases como “Eu sou Charlie” e suas variações. A palavra substitui o ato?

Acho que, nesse “eu sou isso, sou aquilo” o que importa não é o “isso” ou o “aquilo”, mas o “eu sou”. A modernidad­e tem como uma de suas marcas o encerramen­to em si mesmo. Todos conhecem o “penso, logo existo” de Descartes, mas poucos sabem o que completa a frase—“na fortaleza da minha mente”. A fortaleza da mente foi a grande ideia do indivíduo moderno.

Quando digo “eu sou Charlie”, “sou isso”, “sou aquilo”, é essa explosão de si no outro. Para o bem e para o mal. Na guerra santa islâmica também há a explosão de si no outro. Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o outro que me cria e, de novo, há nisso uma dimensão religiosa. Estamos passando da era do eu para a do nós. Voltando à sua questão sobre as denominaçõ­es protestant­es, para mim elas são o fim. Elas encerram. Que os políticos, como seu presidente, saibam se valer delas, é outra coisa.

Esse nós, porém, não é coeso.

Poderíamos terminar dizendo que estamos num momento em que há uma diferença entre a sociedade oficial e a sociedade oficiosa. A oficial é representa­da por pessoas da minha idade, acadêmicos, políticos, jornalista­s, a intelligen­tsia, os que têm poder de dizer e fazer. Ela continua nos velhos caminhos modernos —individual­ismo, racionalis­mo, progressis­mo.

Quando olhamos as práticas juvenis da sociedade oficiosa —e, quando digo juvenis não me restrinjo às novas gerações, como disse antes, há esse mito da criança eterna—, essa sociedade está em desacordo com a oficial. Na França, um eleito, do presidente a um deputado, representa 12% da população. Muita gente não se inscreve para votar, 60% da população ficam de fora, a partir daí é que vem a divisão. Essa sociedade oficial é endogâmica. E há algo diferente em gestação, que para mim é o retorno do povo. A primavera do povo. E que vem sendo chamado de populismo —uma maneira de estigmatiz­ar o fato de que esse povo já não se reconhece porque não é mais representa­do.

Retomando Hannah Arendt, ela dizia que, para que haja representa­ção política, primeiro deve haver representa­ção filosófica. Que eu tenha coisas a dizer que lhe agradem, que eu convença você e você me dê sua voz. Agora há essa espécie de secessão entre oficial e oficioso. Já deve ter dado para entender, o que me interessa é o oficioso.

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Danilo Verpa/Folhapress O sociólogo francês na editora Palas Athena em São Paulo

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