Folha de S.Paulo

Além do chester, o que sobra do Natal é o êxodo

Ir é preciso, mesmo que se chegue já na hora de voltar

- Claudia Tajes Escritora e roteirista, tem 11 livros publicados. Autora de ‘Macha’

Se uma cidade, uma dessas que acorda e dorme cercada de terra firme por todos os lados, pudesse pedir um presente de Natal, um presente só, talvez não fosse segurança. Nem saúde. Nem um transporte público melhor. Nem mais escolas. Se essa cidade que vê o sol nascer e se pôr entre prédios pudesse pedir um presente, é quase certo que seria uma praia. E nem precisaria ser uma paradisíac­a, águas quentes e transparen­tes à la Caribe. Ninguém aqui é exigente. Bastava uma praia.

Pode parecer triste, mas para quem não foi criado dentro dos preceitos cristãos, ou para os que se desgarrara­m ainda ovelhinhas, Natal sempre significou presente. Para a classe média, a oportunida­de de ganhar o videogame ou a bicicleta que pesariam no cartão de crédito dos pais durante o ano inteiro. As boas intenções e o bom comportame­nto durando até a abertura dos pacotes. Quando a gente entende isso, o que sobra do Natal, além do chester requentado por uma semana, é o feriado.

Parece que o homem da cidade já nasce com um chip que traduz no automático: feriado significa praia. Por alguns dias, o mar de carros substituíd­o pelo mar de guarda-sóis. Achar espaço para um é mais complicado que estacionar um Celta na via pública. Na cidade, pelo menos, existe a opção de se pagar uma fortuna em alguma garagem. Já na praia você procura, procura, procura um lugar na areia e acaba tendo que se estabelece­r lá no fundão, quase no asfalto, com vista para o cofrinho que mal cabe na sunga amarela do cidadão à sua frente. Melhor enfiar a cara em um livro para não ver a Aliança pelo Brasil dele.

Claro que esse estado de graça não vem de graça. Antes é preciso passar pelo Êxodo. Na Bíblia, o segundo livro, aquele em que Moisés resgata seu povo da escravidão e o guia para a Terra Prometida. Na vida, assim que o expediente acabar, o momento de pegar o carro ou o ônibus e enfrentar a estrada lotada, parada, enjoada, zoada. Tudo por um feriado na praia. Recomendas­e levar víveres e água. E, caso ainda esteja a caminho à meianoite, um espumante sem álcool para o brinde. Para todos, um Feliz Natal na rua, na chuva, na fazenda, em uma casinha de sapê ou em qualquer quilômetro da BR.

O pior é que, sem feriadão nessa finaleira, o êxodo vai se repetir na semana que vem. É preciso pular as sete ondinhas. Seria tudo tão mais fácil se a cidade tivesse praia.

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Cynthia Bonacossa

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