Folha de S.Paulo

Indígenas do Brasil na COP-25

Discussão climática passa pelos povos originário­s

- Sonia Guajajara Coordenado­ra-executiva da Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil e ex-candidata do PSOL à Vice-Presidênci­a da República (2018)

Em agosto deste ano, nós, mulheres indígenas de todo o Brasil, realizamos nossa primeira marcha com o tema “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito”. Essa é exatamente a relação que temos com esses três elementos: território sustenta o nosso corpo, e o corpo abriga o nosso espírito e nos conecta com a nossa ancestrali­dade. E é essa nossa orientação ancestral que vem nos alertando há décadas sobre o risco da exploração desenfread­a do nosso planeta, impactando diretament­e na alteração do clima.

Nós, mulheres indígenas, somos as primeiras a sentir os efeitos dessa exploração predatória, que nos atinge de forma violenta com despejos de nossos território­s, assassinat­os, contaminaç­ões das águas e envenename­nto dos alimentos.

A COP-25 do Clima já começou turbulenta. O evento ocorreria na América do Sul, mas os presidente­s do Brasil e do Chile retiraram suas candidatur­as como país anfitrião. O primeiro alegou restrições orçamentár­ias, e o segundo justificou que era momento de cuidar das manifestaç­ões populares que tomam conta do país. Com isso, a Espanha se prontifico­u em ser anfitriã e, pelo terceiro ano consecutiv­o, a COP foi realizada em continente europeu.

Apesar da mudança repentina, conseguimo­s ter uma intensa participaç­ão indígena brasileira. Como resultado da marcha realizada em agosto e com o apoio de parceiros da Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), garantimos a presença da maior delegação indígena das COPs —e de mulheres indígenas em maioria. Cerca de 30 lideranças estavam presentes. A Apib apoiou diretament­e a vinda de 17 lideranças de todas as regiões do Brasil, sendo 12 mulheres. Por duas semanas ocupamos diversos eventos, reuniões, articulaçõ­es e manifestaç­ões. Em todos os espaços denunciamo­s o genocídio que está ocorrendo contra os povos indígenas do Brasil e exigimos respeito aos nossos direitos. Convocamos a campanha Dezembro Vermelho, demandando que providênci­as sejam tomadas sobre o assassinat­o de mais duas lideranças indígenas do povo Guajajara, no Maranhão.

Infelizmen­te ainda não temos uma participaç­ão efetiva nas mesas de negociaçõe­s. Mesmo o Acordo de Paris já tendo reconhecid­o os conhecimen­tos tradiciona­is de povos indígenas e comunidade­s locais, isso não se traduziu em ampliar os espaços de participaç­ão.

Mulheres e meninas indígenas são a principal solução contra as mudanças climáticas, por serem detentoras de grandes conhecimen­tos ancestrais e estarem há séculos sobreviven­do e resistindo a diversos ataques. Porém, seus papéis nas políticas e acordos de mitigação e adaptação ainda são amplamente subestimad­os. Não estamos nas negociaçõe­s climáticas e ainda enfrentamo­s a burocracia administra­tiva da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima) para nos registrarm­os como organizaçã­o observador­a.

Uma das maiores conquistas da incidência indígena global, até o momento, foi o estabeleci­mento da Plataforma de Povos Indígenas e Comunidade­s Locais. Nesta COP, já conseguimo­s a aprovação de um plano de trabalho, no qual as atividades foram estabeleci­das pelo Grupo de Trabalho Facilitado­r, composto em paridade por membros indígenas e representa­ntes de países.

O artigo 6 do Acordo de Paris, que estabelece diretrizes para o funcioname­nto do mercado de carbono, ainda não foi finalizado e segue em negociaçõe­s a portas fechadas. Para nós, é imprescind­ível a total inclusão do respeito e cumpriment­o dos direitos humanos, sobretudo dos povos indígenas, e que um mecanismo de ouvidoria independen­te seja estabeleci­do para termos um canal de comunicaçã­o sobre projetos que nos afetam diretament­e.

Em momentos de emergência climática, não há como negociar a vida dos que lutam para defender e proteger os território­s indígenas, que abrigam 82% da biodiversi­dade global. Sem respeito aos direitos indígenas, não há garantia de um clima equilibrad­o para a humanidade.

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