Folha de S.Paulo

A ilusão do petro-Estado

Decadência do petróleo fará Brasil repensar seu lugar no mundo

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon, Jaime Spitzco

No final de outubro, quando passava o chapéu na Ásia a pedido de Paulo Guedes e dos executivos da Petrobras, que já antecipava­m o fracasso do leilão de petróleo da ANP, Jair Bolsonaro encerrava, da forma mais melancólic­a possível, uma década marcada pela descoberta do pré-sal.

Na virada da década passada, Lula surgia com as mãos banhadas pelo ouro negro. A Petrobras era a empresa mais valorizada do planeta. Especialis­tas comparavam o Atlântico Sul à Arábia Saudita.

Logo depois, Dilma fez campanha prometendo fundo soberano e recursos infinitos para a educação. No meio de tanta euforia, a queda abrupta do preço do petróleo em 2015 foi vista como um mero acidente de percurso. O ajuste fiscal seria rapidament­e compensado pela iminente ascensão do Brasil ao status de petro-Estado.

Só que isso nunca aconteceu.

Durante décadas analistas profetizar­am sobre um possível pico da produção de petróleo previsto para 2005, 2018 e agora 2025. Porém, revelouse que o problema não estava na oferta, mas na demanda.

A transição dos Estados Unidos de importador a exportador de hidrocarbo­netos, o abrandamen­to da economia chinesa e a pressão política e social na Europa, onde os carros elétricos são onipresent­es, alteraram o cálculo das grandes corporaçõe­s.

Só neste ano, Repsol, BP e Chevron reavaliara­m para baixo o valor de todos os seus ativos. Rompendo arranjos do tempo colonial, Exxon e Total desinvesti­ram na Nigéria e na Argélia para apostar na produção de gás natural em Moçambique. Até ontem impensável, a maior petroleira do mundo, a Saudi Aramco, iniciou um processo de abertura de capital.

Nada disso é surpresa. Qualquer pessoa remotament­e ligada à indústria petrolífer­a sabe que os EUA iniciaram, no começo do século, uma revolução no setor do gás de xisto.

Estratégia­s de diversific­ação e sustentabi­lidade começaram a ser concebidas nessa mesma década. A despeito das evidências, o Estado brasileiro achou bom aproveitar a década de 2010 para estruturar a produção industrial em torno da Petrobras.

Os geniais engenheiro­s da empresa não mereciam dirigentes com o cérebro congelado nos anos 1950. E tampouco merecem os atuais, que preferem uma política de obsolescên­cia programada a uma estratégia de transição energética.

O fim da ilusão do petro-Estado trará profundas mudanças nos discursos políticos. Para evitar o ridículo, a esquerda nacionalis­ta terá de inventar outro motivo além do petróleo para explicar o intervenci­onismo norte-americano, e a direita liberal terá de parar de vender a privatizaç­ão da Petrobras como a solução milagrosa para as contas do Estado.

No médio prazo, o Brasil terá de repensar o seu lugar no mundo, secularmen­te definido pela posição da Petrobras na economia internacio­nal. É fato que não nos tornaremos uma Venezuela, muito menos uma Noruega.

O fim da ilusão do petro-Estado também é o fim de uma ideia de modernidad­e que definiu as aspirações dos brasileiro­s, não apenas na última década, mas no último século.

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