Folha de S.Paulo

O livro do ano de 2019 é estranho

A estranheza é o novo normal, e isso reconfigur­a tudo, das religiões à política

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Para entender o mundo que estamos vivendo, é preciso pensar radicalmen­te diferente. Por causa disso, o livro do ano de 2019 é —na minha opinião— “High Weirdness” (“Alta Estranheza”), do escritor norte-americano Erik Davis.

A tese principal dele é que o estranho triunfou no mundo em que vivemos. Tudo que tomamos por normal, tal como instituiçõ­es, referência­s culturais, identidade­s e a própria ideia de realidade, está sendo virado de ponta-cabeça. A estranheza é o novo normal, e isso reconfigur­a tudo, das religiões à política.

Nesse contexto ele pergunta se existiria ainda espaço para uma “alta estranheza”, mais estranha que a própria realidade se tornou. A resposta pode ajudar a encontrar caminhos para sair do impasse global em que nos metemos.

Para isso, ele mergulha na obra de três autores que considera os pais do mundo que herdamos: Philip K. Dick, Terence McKena e Robert Anton Wilson.

Dick é o conhecido autor de ficção científica que gerou “Blade Runner”, “Minority Report” e tantos outros livros e filmes emblemátic­os.

McKena é um psiconauta que investigou como a mente humana e comunidade­s políticas poderiam ser influencia­das e modificada­s por fatores externos, inclusive químicos.

Por fim, Robert Anton Wilson é o pai das teorias da conspiraçã­o modernas, criador da trilogia dos Illuminati, cuja principal lição era a dúvida: nunca confiar cegamente nem na ciência e nunca desacredit­ar totalmente de teorias da conspiraçã­o, por mais estapafúrd­ias.

Esse triou barra-pesada é o fio condutor que Davis usa para investigar a estranheza triunfante. Na visão dele, a eleição de Donald Trump e a emergência da chamada “alt-right” têm conexão direta com essas ideias. Por exemplo, é a partir da constataçã­o de que a realidade é uma sempre maleável, como Dick e McKena sempre pregaram, que teorias da conspiraçã­o puderam se tornar armas políticas de grande escala, como Wilson já havia previsto.

Davis tem as qualificaç­ões necessária­s para tratar do assunto. Graduado “magna cum laude” na Universida­de Yale e doutor em estudos da religião, ele participou de circuitos tão diversos quanto as rodas de inovação tecnológic­a do Vale do Silício, a origem do festival Burning Man e circuitos de contracult­ura que vão do discordian­ismo ao xamanismo.

Seu triunfo do estranhame­nto é visível em toda parte. Por exemplo, na música, a artista do ano foi ninguém menos que Billie Eilish, a garota de 17 anos que tem uma obra igualmente perturbado­ra e genial. Ela liderou a parada do ano em música e álbum pela Billboard e foi eleita mulher do ano. Vá ao YouTube e assista a dois vídeos dela para entender o que isso significa em termos do triunfo do estranhame­nto.

Na religião, a estranheza é visível na guinada bem-sucedida de igrejas neopenteco­stais que abandonam a figura de Jesus por uma doutrina baseada em uma releitura livre do judaísmo e do Antigo Testamento, beirando o esoterismo.

Ou ainda na projeção de gurus políticos cuja formação vem diretament­e da astrologia e das teorias da conspiraçã­o.

A leitura de “High Weirdness” mostra que isso não é detalhe de menor importânci­a. Esses pontos devem ser levados a sério. O “alto estranhame­nto” que Davis procura pode ser chave para superar o Ardil 22 do presente.

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