Folha de S.Paulo

Fascismo identitári­o não existe

Antes de jogar lugar de fala pela janela, diferencie­mos entre silenciar e democratiz­ar

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP e doutor pela Central European University (Budapeste)

Começo aqui com uma digressão. “Vista-se como quiser. Chame a si mesma como quiser. Durma com qualquer adulto que consinta. Viva sua melhor vida em paz e segurança. Mas [é justo] forçar as mulheres a deixarem seus empregos por afirmarem que sexo é real? #EuApoioMay­a”. Este é um tuíte da escritora britânica J.K. Rowling, autora da série de livros Harry Potter, na última quarta (19).

A Maya a que se refere a hashtag é a pesquisado­ra Maya Forstater, cujo contrato de trabalho em um centro de pesquisa em Londres não foi renovado. Maya é contra o reconhecim­ento legal de mulheres transexuai­s como mulheres. Em setembro de 2018, postou não acreditar “que ser mulher seja uma questão de identidade. É uma questão de biologia”. Aqui, Maya adentra uma seara de imprecisão conceitual na distinção sexo/gênero, objeto de celeuma histórica, inclusive entre feministas.

Rowling criticou a decisão judicial no último dia 18 desfavoráv­el a Maya, segundo a qual suas posições não constituem visões filosófica­s protegidas pela lei de igualdade britânica, pois incompatív­eis com a dignidade e direitos fundamenta­is de outros e capaz de gerar um ambiente de hostilidad­e, inclusive no trabalho. Importante mencionar que o juiz não chegou a discutir em si a legalidade da não renovação do contrato de trabalho —assunto que ficou para 2020.

No mar de hashtags, há um lugar para argumentar, numa só toada, que a posição de Forstater é profundame­nte transfóbic­a, por anular a experiênci­a vivida de mulheres trans enquanto mulheres —com a consequênc­ia jurídica cabível— ao mesmo tempo em que deixa espaço para o debate histórico sobre sexo/gênero?

No momento em que os termos do debate restam hiperboliz­ados, pouco avançamos. Abro a Folha deste domingo (22) e descubro que, para Antonio Risério, lugar de fala leva a um fascismo identitári­o. Deixemos de lado o hiperbolis­mo do termo fascismo —desconheço a existência de esquadrões armados de militantes identitári­os em busca da constituiç­ão de um Estado de partido único opressor gayzista. Deixemos de lado, inclusive, que branquitud­e também é identidade.

Chamar lugar de fala de fascismo identitári­o é não o compreende­r. Lugar de fala não é para impedir o debate, não é um argumento de autoridade para determinar quem esteja certo e não é para definir identidade­s únicas. Atentar para as experiênci­as vividas que informam a fala é questionar hierarquia­s de discurso e fluir diálogo. Deveria, ao menos. É para que mulheres não sejam interrompi­das constantem­ente em reuniões de trabalho, para que negros e negras tenham direito à voz diante do poder armado que lhes rouba a voz e a vida.

Não é da literatura sobre o tema que se extrai qualquer postura autoritári­a do lugar de fala. Certamente não de Spivak, que, ao olhar como sujeitos subalterno­s são silenciado­s, questiona uma visão única da história. Certamente não de bell hooks, que ressalta no clássico “Censura da Esquerda e da Direita” a responsabi­lidade de professore­s e grupos progressis­tas para com a liberdade de expressão, necessária para desmantela­r opressão. Certamente não de Djamila Ribeiro, que em seu livro defende lugar de fala não como censura, mas como questionam­ento das hierarquia­s da fala.

À esquerda com o uso incorreto de lugar de fala como autoridade, e à direita com a apropriaçã­o de negros e LGBTs conservado­res para as suas trincheira­s, o que era para ser um mecanismo para fomentar debate se torna seu oposto.

Estou mais interessad­o em onde nossos lugares de fala se encontram. Na possibilid­ade de construção de um mundo onde nossas experiênci­as vividas não sejam nem silenciada­s, nem essenciali­zadas. Para que isso aconteça, alguns precisam reconhecer, com humildade, que suas visões de mundo não são universais. Chamar isso de fascismo é ignorar a multiplici­dade da experiênci­a humana.

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