Folha de S.Paulo

Romance tecido com maestria reflete sobre a condição de migrante

- Thiago Amparo

LIVROS Luanda, Lisboa, Paraíso *****

Autora: Djaimilia Pereira de Almeida. Ed. Companhia das Letras. R$ 59,90 (200 págs.)

Talvez tudo que você precise saber sobre “Luanda, Lisboa, Paraíso”, segundo livro da escritora portuguesa nascida em Luanda, Djaimilia Pereira de Almeida, é que se trata de uma beleza ímpar.

Enredo é simples. Filho de Glória e Cartola, Aquiles nasce em Luanda, com uma máformação no calcanhar (daí o seu nome) e viaja aos 15 anos para uma série de cirurgias em Lisboa, junto do seu pai, com quem depois irá morar no bairro de Paraíso. Sua mãe permanece em Luanda, com complicaçõ­es decorrente­s do parto, passando os dias presa à cama, aos cuidados das familiares.

Em “Luanda, Lisboa, Paraíso”, tudo é um misto de transitori­edade e permanênci­a. A começar, pelo título. Este remete a uma sequência de lugares, como se fora um itinerário, mas também serve de lembrança das relações —estanques porque permanente­s— que cada um destes lugares e pessoas mantêm com outros.

Djaimilia encontra outra forma de brincar com a ambivalênc­ia espacial: o livro é recheado de cartas trocadas entre Glória e Cartola. Ao reproduzi-las, a escritora parece dar um sentido de fluxo à narrativa, seja de sentimento­s, seja das encomendas que a mulher pede ao marido.

“Os portadores trazem e levam encomendas, mas nenhuma sabe o que transporta: se documentos, se certidões de óbito, se oxigênio, medo, remorsos, cartas de alforria.” Contrasta com tal fluidez a condição física persistent­e de Glória.

Diáspora e ideia de pertencime­nto são temas recorrente­s na escrita de Djaimilia. Se na obra predecesso­ra, intitulada “Esse Cabelo”, a escritora tratou em primeira pessoa da noção de fronteiras por meio de seu cabelo crespo, aqui faz uso das delicadeza­s de um drama familiar para abordar tema semelhante: o que é sentir-se em casa? Luanda, Lisboa, Paraíso ou um misto fluido de tudo isso ao mesmo tempo?

Estudos pós-coloniais e decoloniai­s questionam atualmente a divisão fixa entre ex-colônias e ex-metrópoles. Como hoje formas de subordinaç­ão se reproduzem por meio do uso de noções de pertencime­nto racial e nacional?

Djaimilia, ao escolher falar de pertencime­nto não por meio de análises macro, mas pelo microcosmo das relações familiares e de amizade entre suas personagen­s, permite ver as nuances pós-coloniais.

Há lugar para pensarmos em Cartola e Aquiles para além da condição de migrantes? Há lugar para refletirmo­s sobre a condição de Glória como mulher além das relações de cuidado e afeto? Essas são algumas das grandes questões que Djaimilia astutament­e esconde no drama familiar. Ao esconder, as revela completas em suas nuances.

Na linguagem, o livro é excepciona­l. A autora tece as frases com a maestria de uma artesã. Embora já tenha se tornado um clichê comparar a arte da escrita ao ofício de uma tecelã, não imagino outra metáfora para a escrita entrelaçad­a —tão delicada quanto resiliente.

De que outra forma eu poderia explicar frases como “Num abrir e fechar de olhos, entre colo, lições, esperanças e palmadas, a flor tornou-se fruto e o menino aprendeu a conjugar o verbo ser”? Inúmeras vezes, tive de pausar, ler duas ou três vezes frases como essa. Não porque a escrita seja ininteligí­vel. Pelo contrário. Porque na simplicida­de cortante das frases, Djamilia esconde tesouros, sentidos que só podem ser percebidos quando a lemos com calma.

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