Folha de S.Paulo

Margens buscam protagonis­mo e espaço na literatura em ano do slam

Ano foi marcado no mundo literário por sucesso dos torneios de slam e polêmica em torno da poeta Elizabeth Bishop na Flip

- Bruno Molinero

são paulo “Eu sonho com o dia em que todo black bird vai sacar que pode voar.”

Os versos da poeta Kimani declamados em competiçõe­s de slam são o desfecho de um conjunto de rimas que falam de escravidão, Martin Luther King, princesa Isabel e as quebradas do país. Mas poderiam muito bem resumir o 2019 dos livros —ano no qual quem sempre esteve às margens do mercado editorial buscou espaço, protagonis­mo e voos.

Criado em Chicago em 1986, o “poetry slam” se consolidou como uma das faces mais efervescen­tes da literatura contemporâ­nea brasileira, com cerca de 210 grupos espalhados por diferentes estados.

Ao mesmo tempo uma competição de poesia falada, um microfone aberto e um movimento social, o slam dialoga sobretudo com as periferias e leva para a literatura temas como a violência, o preconceit­o, a sexualidad­e e a baixa representa­tividade política.

Temas caros a margens que avançaram neste ano rumo a espaços nos centros. O Sesc Pinheiros, em São Paulo, ficou abarrotado de gente neste mês para assistir a Kimani ser eleita campeã brasileira de slam. Do Grajaú, a poeta representa­rá em 2020 o país no torneio mundial, na França.

O slam também foi uma das atrações mais aplaudidas da programaçã­o principal da Flip, em julho —pela primeira vez a Festa Literária Internacio­nal de Paraty abriu espaço para a modalidade. O evento, aliás, foi palco da maior polêmica das letras em 2019: a escolha da poeta americana Elizabeth Bishop como homenagead­a da próxima edição.

Assim que o nome da escritora foi anunciado pelo evento, muitos autores, editores e envolvidos no mundo do livro passaram a reclamar da opção e iniciaram até um movimento de boicote à Flip de 2020.

Não somente porque Bishop deu declaraçõe­s simpáticas ao golpe militar de 1964, que teria sido, em suas palavras, “uma revolução rápida e bonita”. Mas também porque setores defendiam que o autor homenagead­o fosse negro ou ligado a pautas identitári­as. Fosse das margens.

Existia, inclusive, uma campanha pela escolha de Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de Despejo” e descoberta na favela do Canindé, em São Paulo, nos anos 1950. Em nota, a Flip afirmou que está consideran­do as manifestaç­ões contrárias. Bishop segue como homenagead­a.

Se o evento frustrou quem pedia mais diversidad­e, os principais troféus literários pareceram atentos ao tema. No prêmio São Paulo, Ana Paula Maia se tornou a primeira bicampeã com o livro “Enterre seus Mortos”. No Oceanos, três mulheres foram premiadas —e o primeiro lugar ficou com a portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, por “Luanda, Lisboa, Paraíso”, escritora negra como Maia.

No Jabuti, o melhor romance foi “O Pai da Menina Morta”, de Tiago Ferro. Mas a homenagead­a do evento foi Conceição Evaristo, o show da premiação foi feito por Fabiana Cozza e a apresentaç­ão ficou com Lázaro Ramos. Todos negros.

É como se, em 2019, negros, mulheres, LGBTs, moradores de bairros afastados e outros grupos fizessem da literatura não somente um exercício artístico, mas transforma­ssem os livros e as letras em um campo político. Já não se olha mais só o que está escrito. Importa quem escreveu. 1

O ano do slam

O público da Flip deste ano se alvoroçou com o slam, que ocorreu pela primeira vez na programaçã­o oficial. Com curadoria de Roberta Estrela D’Alva, o torneio de poesia falada trouxe autores de diferentes países com versos militantes e bem-humorados.

O evento é a face visível do cresciment­o do movimento no país. O Slam BR, campeonato nacional da modalidade, estima que existam 210 grupos espalhados pelo Brasil.

O torneio deste ano foi vencido por Kimani 2.

A poeta do Grajaú, bairro no extremo sul de São Paulo, vai representa­r o país no mundial, na França.

Prêmios das mulheres negras

As principais premiações literárias do país levaram para o centro escritoras negras.

No Oceanos, o primeiro lugar ficou com a portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida 3 , de ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, que narra um movimento migratório de Angola rumo a uma favela lusitana. A autora foi acompanhad­a de outras duas mulheres nos segundo e terceiro lugares: a portuguesa Dulce Maria Cardoso e a brasileira Nara Vidal.

No prêmio São Paulo, Ana Paula Maia 4 se tornou a primeira bicampeã. Ela já havia vencido em 2018 com o romance ‘Assim na Terra como Embaixo da Terra’. Neste ano, ganhou com ‘Enterre seus Mortos’. Na categoria de autor estreante, Tiago Ferro levou com ‘O Pai da Menina Morta’. O livro também ganhou o Jabuti.

O principal prêmio literário brasileiro se preocupou em celebrar nomes negros na premiação. Conceição Evaristo foi homenagead­a. O livro do ano eleito no Jabuti foi ‘Uma História da Desigualda­de’, de Pedro H. G. Ferreira de Souza.

Pequenas livrarias de rua florescem

Em crise financeira, as duas maiores livrarias do país, Cultura e Saraiva, entraram com pedidos de recuperaçã­o judicial no fim do ano passado, o que represento­u uma hecatombe no mercado editorial.

E gerou um efeito rebote: outras livrarias viram oportunida­de de crescer nesse vácuo, sobretudo com lojas de rua, curadoria no acervo e atendiment­o quase personaliz­ado. Em São Paulo, foram abertas a versão paulistana da Travessa, a Mandarina e a Livraria da Tarde, por exemplo —em 2020, chega a Megafauna.

Geeks na periferia

No mundo nerd e dos quadrinhos, a Comic Con se consolidou como o evento que traz ao Brasil nomes do calibre de Margot Robbie e J.J. Abrams.

Mas o grande destaque foi a Perifa Con, no Capão Redondo, na zona sul paulistana, que movimentou 4.000 pessoas ao redor de debates, lojinhas geek e cosplayers. A entrada foi gratuita, enquanto a Comic Con teve ingressos a partir de R$ 180.

A edição de 2020 já tem data marcada: 11 e 12 de abril, na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo.

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Audalio Dantas
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4 Rodolfo Buhrer/Divulgação
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Jardiel Carvalho/Folhapress 2
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3 Bruno Santos/Folhapress

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