Folha de S.Paulo

Lei contra abuso deve se concentrar em ação policial

- Wálter Nunes

A nova lei contra abusos de autoridade­s deverá ser mais eficaz ao tratar do trabalho de policiais na ponta, segundo especialis­tas ouvidos pela Folha. Eles não acreditam, contudo, que haverá uma grande onda de punições devido à nova legislação.

Especialis­tas dizem que excesso policial deve ser principal alvo de regras que passam a valer em janeiro e que afetam ainda juízes e promotores

são paulo Em uma sexta-feira de junho de 2011, dois PMs perseguira­m dois suspeitos em uma moto pelas ruas de Paraisópol­is, a mesma favela da zona sul de São Paulo onde uma ação policial terminou com nove jovens mortos pisoteados no começo deste mês.

No episódio de oito anos atrás, essa busca incluiu invasão de residência­s sem mandado judicial, detenção ilegal para averiguaçã­o, mudança de lugar de prova. Os dois alvos foram presos acusados de terem atirado. Indiciados pela polícia e denunciado­s pelo Ministério Público, foram inocentado­s pela Justiça.

Esse tipo de caso é um dos principais alvos da nova lei de abuso de autoridade, aprovada neste ano pelo Congresso e que entra em vigor no dia 3 de janeiro de 2020.

A nova legislação atinge, dentre outros órgãos, integrante­s das polícias, do Ministério Público e do Judiciário e especifica condutas que devem ser considerad­as abuso de autoridade, além de prever punições.

Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica e com punição branda —a previsão agora é de até quatro anos de detenção.

Juízes, promotores, defensores públicos e advogados ouvidos pela Folha dizem duvidar que a nova lei provoque uma onda de punições, até mesmo devido aos filtros após as denúncias.

Uma representa­ção contra abuso de autoridade necessaria­mente tem que ser ajuizada por um membro do Ministério Público e julgada por um magistrado.

Embora as mudanças possam inibir a atuação de vários segmentos, a avaliação predominan­te de especialis­tas é que os excessos policiais tendem a ser os principais alvos.

“A lei acaba sendo mais efetiva para quem está na ponta da investigaç­ão, que são os policiais. Eles têm maior contato com os investigad­os, são eles que cumprem os mandados, que fazem as abordagens”, afirma o promotor Rogério Sanches Cunha, professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

O advogado Eduardo Capano, que defende policiais civis, militares e federais acusados de irregulari­dades, concorda. “Vai pesar mais contra policiais”, afirma.

“Quando um agente público for denunciado por abuso de autoridade, a representa­ção contra ele irá para a mão de um promotor e será julgada por um juiz. Então, acho difícil que ações assim contra promotores e juízes prosperem”, completa.

“Eu advogo há 25 anos para sindicatos de policiais. Eu tenho cem casos de condenação. Mas na magistratu­ra e no Ministério Público quase não existe punição. É muito esporádico”, afirma.

Durante toda a tramitação da nova lei houve polêmicas. De um lado, magistrado­s, promotores e policiais viam margem para punir quem combate a atuação do crime organizado e a corrupção. De outro, defensores dos direitos humanos argumentam que a proposta não pune quem age corretamen­te.

Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a obtenção, pelo site The Intercept Brasil, de mensagens entre integrante­s da Lava Jato em Curitiba e que colocaram em xeque a conduta da força-tarefa e do ex-juiz Sergio Moro.

Os diálogos indicaram, entre outras coisas, que Moro orientou a Procurador­ia a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigaç­ão. Procurador­es requisitar­am documentos sigilosos da Receita sem ordem judicial.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a vetar pontos de 19 dos 45 artigos do projeto, numa tentativa de aliviar a norma, mas boa parte dos vetos foi derrubada pelo Congresso.

Com isso, foi retomada, por exemplo, a punição de até quatro anos de detenção para quem constrange­r um preso, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistênci­a, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.

O criminalis­ta Augusto Arruda Botelho, conselheir­o do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), diz que a lei anterior que tratava de abuso de autoridade, editada em 1965, durante a ditadura militar, tinha “defeitos técnicos evidentes e trazia em seu texto tipos penais muito abertos”.

“A lei atual é mais clara, objetiva e traz um rol muito mais taxativo de condutas que podem ser considerad­as criminosas”, diz.

O promotor Sanches Cunha, porém, avalia que na nova lei ainda há pontos vagos.

Ele cita como exemplo a punição do agente público que impede um preso de se encontrar com seu defensor “em prazo razoável antes da audiência”, mas sem determinar qual será esse prazo.

O promotor cita também a criminaliz­ação de alguém que dê início a um processo sem justa causa fundamenta­da. “Este conceito de justa causa fundamenta­da é muito vago”, diz.

“Na doutrina temos pelo menos cinco definições distintas. Essa indetermin­ação não combina com normas que tratam de crimes”, completa Sanches Cunha.

O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais), Fernando Mendes, diz não acreditar que haverá uma onda de punições, mas cogita que no início pode haver uma série de representa­ções contra investigad­ores e juízes.

“O que é ruim. O juiz terá que perder tempo se defendendo dessas representa­ções, mesmo que não haja motivo para punição”, diz.

O procurador-geral do Estado de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, considera que haverá um efeito prático aos investigad­ores.

“Todos terão que ser mais cuidadosos na justificat­iva de suas ações”, diz. Mas vê risco de a nova lei inibir ações do Ministério Público. “É preciso assegurar à sociedade e aos promotores que eles possam fazer seu trabalho.”

Um ponto que deverá servir de freio para uma enxurrada de representa­ções contra autoridade­s é um artigo que determina que só haverá abuso de autoridade se os agentes públicos agirem de maneira intenciona­l para prejudicar alguém.

“O agente público só vai ser incriminad­o se for provado dolo, ou seja, que ele agiu intenciona­lmente para cometer um abuso, que ele agiu com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, por capricho ou satisfação pessoal”, diz Rogério Sanches Cunha.

O defensor público Renato de Vitto ainda destaca um outro fator de fora da lei para imaginar que não haverá uma onda de denúncias.

“Minha experiênci­a na Defensoria, com réus pobres, é que as pessoas têm medo de represália. Já existia uma lei contra abuso de autoridade antes e as pessoas não têm coragem de denunciar, por temer represália dos policiais”, afirma Vitto.

O caso de dois rapazes acusados da tentativa de homicídio de dois policiais militares em Paraisópol­is (zona sul de São Paulo) em junho de 2011 foi analisado a pedido da Folha sob a ótica da nova lei de abuso de autoridade.

O criminalis­ta Augusto de Arruda Botelho, do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), com apoio do estagiário André Pereira Lima, leu os três volumes do processo contra os acusados.

O episódio envolveu dois policiais da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motociclet­as), que iniciaram uma perseguiçã­o contra dois suspeitos de moto em uma sextafeira, por volta das 17h.

Pela denúncia do Ministério Público, feita com base no relatório policial, os rapazes foram acusados de tentativa de homicídio porque teriam feito vários disparos de arma de fogo contra os PMs. O capacete de um dos soldados foi perfurado por um tiro, que não atingiu a sua cabeça.

Em março de 2014, um dos suspeitos foi inocentado pelo Tribunal do Júri, que entendeu não haver provas contra ele. Em novembro de 2018, outro rapaz também foi inocentado.

Os nomes dos jovens são omitidos a pedido da Defensoria Pública de São Paulo, por questão de segurança.

No episódio de Paraisópol­is, os policiais chegaram a Vinícius (nome fictício), segundo eles, por meio de um RG caído próximo de cápsulas deflagrada­s. A versão oficial, porém, foi confrontad­a por depoimento­s de testemunha­s que presenciar­am a entrada dos policiais na favela.

A mãe de Vinícius diz que os policiais entraram em sua casa, sem autorizaçã­o, e pegaram os pertences dele, inclusive a carteira com esse RG.

Os policiais continuara­m a busca pelos outros atiradores e encontrara­m André (nome fictício), menor de 18 anos, que, em conversa informal, sem a presença de um adulto, teria ainda apontado Iuri (nome fictício) como sendo outro atirador.

Com nome e endereço dos suspeitos em mãos, os policiais fizeram busca e apreensão na casa deles e de seus vizinhos. Os soldados disseram que entraram sem mandado nas residência­s dos moradores da favela porque haviam sido autorizado­s pelos moradores. Mas isso é negado por várias testemunha­s.

André e Iuri foram levados de camburão ao 89º DP, no Morumbi. Iuri ficou detido pelo dia inteiro sem que sua prisão tivesse sido oficializa­da. O pedido de prisão temporária só foi feito às 22h.

Segundo Botelho, os procedimen­tos dos policiais poderiam ser enquadrado­s nos artigos 22 e 25 da nova lei de abuso de autoridade.

O artigo 22 diz que comete crime um agente público que invade ou adentra um imóvel clandestin­amente ou à revelia da vontade do ocupante e sem determinaç­ão judicial.

A norma também enquadra agentes públicos que coagem ou ameaçam para permitir acesso ao imóvel. A pena deste crime varia de 1 a 4 anos de prisão e multa.

O artigo 25, por sua vez, diz que é crime obter prova durante uma investigaç­ão por meio ilícito. A pena também é de 1 a 4 anos de prisão e multa.

O conselheir­o do IDDD contabiliz­ou que em dois dias os PMs violaram três vezes esse artigo 22 da nova lei, que criminaliz­a a busca em residência sem ordem judicial.

O depoimento de um parente de Vinícius também aponta que os policiais podem ter fraudado a principal pista que incriminav­a esse rapaz.

Além da invasão do domicílio sem mandado, neste caso há também enquadrame­nto no artigo 23 da nova lei, que diz que é crime mudar lugar de provas durante uma investigaç­ão para responsabi­lizar alguém. A pena também vai de 1 a 4 anos de prisão.

Renato de Vitto, um dos responsáve­is pela defesa dos dois réus, diz que a Defensoria recorreu a tribunais superiores alegando que a investigaç­ão continha abuso de autoridade.

Invasão a imóvel e mudança em prova enquadrari­am PMs

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Bruno Rocha - 4.dez.19/Fotoarena/Folhapress Casas da comunidade de Paraisópol­is, na zona sul de São Paulo

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