Folha de S.Paulo

Mar dos Coliformes Fecais

Que se proíba o controle de balneabili­dade, essa coisa de comunista

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

A Austrália tem um mar de Coral, pura poesia. Os atlas argentinos nomeiam o Atlântico Sul como mar Argentino, pura imaginação geopolític­a. Numa derivação conceitual equivocada, os militares deram de chamar nosso mar territoria­l “Amazônia Azul”. Sugiro o realismo: mar dos Coliformes Fecais.

A Folha reuniu as informaçõe­s, praia por praia (bit.ly/2rloxr0). De norte a sul, os 7.367 km do litoral brasileiro formam a mais extensa faixa de poluição oceânica por águas de esgoto do mundo. É como se os Bolsonaros —o pai, os filhos e o espírito santo, que mora na Virgínia— tivessem discursado sequencial­mente, do Oiapoque ao Chuí, envenenand­o um mar sem fim. Mas, de fato, a culpa (ainda) não é deles: o estado de nossas praias reflete os valores da política nacional.

As praias queridas da minha infância (Gonzaguinh­a, em São Vicente, Perequê-Mirim, em Ubatuba) estão imundas, assim como as dos meus 20 anos (Trindade, em Paraty, Farol da Barra, em Salvador, Lagoa da Conceição, em Florianópo­lis). As dos meus 40 (Porto de Galinhas, em Pernambuco,

Morro de São Paulo, na Bahia) já rumam ao mesmo destino.

No Brasil, apenas 45% dos efluentes coletados são tratados. Grande parte do restante segue, pelos rios, até o mar. O cenário deprimente deteriora-secada vez mais. No conjunto do litoral, em 2019, 35% das praias são classifica­das como ruins ou péssimas e 27% como regulares. Nos 31 municípios definidos como prioritári­os pelo Ministério do Turismo, aqueles com maior visitação, 42% das praias estão ruins ou péssimas. Boas ,28%. O retrato decorre de um padrão de urbanizaçã­ocosteira linear e predatória com o despejo generaliza­do de esgotos nos cursos d’água.

As atenções, nos últimos meses, concentrar­am-se no “inimigo externo”: as manchas visíveis, pretas, do óleo misterioso derramado em alto mar. Ricardo Salles acusou os “comunistas” (ONGs, Venezuela) pelo ataque bioquímico. Nesse passo, esquecemos do “inimigo interno”: os invisíveis microrgani­smos patogênico­s que contaminam águas azuis como o círculo interno da bandeira nacional. Limpamos as manchas, pintamos a fachada.

Duas quadras atrás da Boa Viagem, águas de esgoto correm numa vala fedorenta a céu aberto. Quase inexistem praias limpas em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, as maiores metrópoles costeiras. Mas os coliformes espalham-se também no entorno litorâneo de cidades médias e povoados, especialme­nte junto à foz dos rios e córregos. Os efluentes avançam por Ilhabela, pela Costa do Descobrime­nto, pela Restinga da Marambaia. Que tal, na bandeira, trocarmos as estrelas pelos desenhos da Escherichi­a coli ,da Enterobact­er cloacae, da Klebsiella pneumoniae?

Segundo a Constituiç­ão, o saneamento básico é responsabi­lidade compartilh­ada da União, dos estados e municípios. A lei 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais de saneamento básico, prevê a obrigação de fornecimen­to universal de esgotament­o sanitário. É letra morta, afogada nas fezes. No longo ciclo de expansão, do início do século a 2014, sob a euforia do pré-sal e dos preparativ­os da Copa, o esgoto correu solto para os rios, em condomínio­s litorâneos dos ricos e periferias pobres que se alastravam. Pela esquerda e pela direita.

Há algo aí que vai muito além do meio ambiente. Nosso Estado organiza o conflito pela distribuiç­ão de benesses, privilégio­s, subsídios e rendas privadas, mas não cuida dos bens e direitos públicos. A degradação das praias acompanha o roteiro da apropriaçã­o particular de várzeas, mangues e morros, à sombra da lei da guerra de todos contra todos, no nosso perene faroeste caboclo. Brasil acima de tudo: que se proíba o controle de balneabili­dade, essa coisa de comunista.

Milhões de brasileiro­s passarão o Ano-Novo no mar dos Coliformes Fecais. A erisipela, a diarreia, a disenteria, a cólera e a febre tifoide vêm depois.

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