Folha de S.Paulo

Única Assembleia do país sem mulher reflete estado onde poder é masculino

Nenhuma deputada faz parte do Legislativ­o de Mato Grosso do Sul, formado por 24 homens

- Joelmir Tavares

campo grande “Tem que ser senhores deputados e senhoras deputadas”, disse aos colegas uma estudante que protestava contra o fechamento de escolas estaduais em Mato Grosso do Sul.

A turma discutia a melhor forma de se dirigir aos membros da Assembleia Legislativ­a, caso algum dos 24 eleitos aparecesse no plenário para ouvi-los, semanas atrás.

“Mas tem deputada mulher também?”, um dos jovens indagou. “Deve ter, né?”, afirmou a adolescent­e depois de pensar por alguns segundos.

A resposta que lhe pareceu óbvia estava, contudo, errada. Quando a Folha relatou ao grupo que a Assembleia local é a única do país sem representa­ntes femininas, a informação foi recebida com espanto.

No espaço destinado às sessões, adornado por um grande painel azul, as únicas mulheres que circulam são as funcionári­as da área técnica que auxiliam as votações e as assessoras dos deputados.

No saguão do prédio, os quadros com fotos de ex-parlamenta­res e de ex-presidente­s da Casa mostram que paridade de gênero não é o forte ali.

Na legislatur­a anterior, três deputadas exerciam mandato, mas desde 1987 a situação não chegava ao extremo de 100% de deputados homens.

Em 40 anos (o estado foi instalado em 1979), apenas nove mulheres tomaram posse na Assembleia —a maioria por ter ligações familiares e conjugais com líderes políticos.

Embora digam defender a presença de mais mulheres, os atuais ocupantes de mandatos minimizam as raízes do problema. Falam, por exemplo, que faltam interessad­as em se candidatar e que mulher nem sempre vota em mulher.

Ponderam, ainda, que a situação é mais igualitári­a em outros espaços.

Na Câmara Municipal de Campo Grande, são duas vereadoras entre 29 cadeiras; para a Câmara dos Deputados, duas mulheres se elegeram, de um total de oito parlamenta­res; nas três vagas do estado no Senado, só uma é preenchida por homem.

“Isso não apaga o fato de que a política aqui é muito machista e fechada”, diz o deputado estadual Pedro Kemp (PT). “Vem da cultura do agronegóci­o, baseada na visão patriarcal, de que o homem é o chefe da família e manda em todos.”

Um indício dessa mentalidad­e foi visto no início deste ano na Câmara da capital: os vereadores deixaram as mulheres de fora da Comissão Permanente de Cidadania, Direitos Humanos e de Proteção à Mulher.

Criado o constrangi­mento, a composição acabou sendo modificada para incluir Dharleng Campos (PP), uma das duas vereadoras da cidade.

Na Assembleia, muitos deputados se esquivam de comentar o tema. “Foi resultado das regras da legislação eleitoral”, contempori­za Marçal Filho (PSDB), indagado sobre a ausência de mulheres.

“É momento, né?”, resume Barbosinha (DEM). Ambos se referem ao fato de que candidatas mulheres até alcançaram votação expressiva em 2018, mas não entraram na legislatur­a porque não atingiram o quociente partidário.

É o caso de Mara Caseiro (PSDB), que buscava a reeleição e conseguiu 23 mil votos, mais do que o total obtido por 12 deputados que conquistar­am cadeira na Casa.

Por causa dos critérios do sistema proporcion­al, João Henrique (PL), por exemplo, garantiu seu assento tendo recebido apenas 11 mil votos.

“É lamentável, muito triste”, diz Mara, que ficou na posição de suplente e hoje ocupa um alto cargo no governo Reinaldo Azambuja (PSDB). Ela ainda poderá voltar à Casa onde exerceu dois mandatos, caso algum eleito da coligação saia para disputar a eleição de 2020, vença e se afaste.

Para a tucana, mesmo que os homens atualmente no Legislativ­o queiram dar atenção a pautas femininas —como muitos afirmam fazer—,

“não é a mesma coisa que ter uma mulher lá”.

Ela defende a criação de uma cota para a eleição de mulheres nas casas parlamenta­res, “30% para começar”, como forma de aprimorar a representa­ção. A lei hoje obriga os partidos a lançar pelo menos 30% de candidatas, mas não reserva um percentual mínimo de cadeiras para elas.

O discurso frequente nos corredores da Assembleia é o de que a atual legislatur­a busca suprir a ausência investindo em iniciativa­s como a criação da Frente Parlamenta­r em Defesa da Mulher, composta por dez homens.

Seu objetivo é “implementa­r ferramenta­s para o fortalecim­ento das políticas e direitos das mulheres de Mato Grosso do Sul”, algo que tem se restringid­o, na prática, a um discurso de combate à violência doméstica e ao feminicídi­o.

O estado é um dos que mais têm registros de agressões a mulheres no país.

“A mulher tem uma visão mais sensível para determinad­as questões, né?”, afirma Herculano Borges (SD), um dos integrante­s da frente.

“Acho que, se tivesse mulher [na Assembleia], poderia ter um enfoque mais específico sobre alguns projetos.”

“Sei lá se faz diferença”, opina o veterano Onevan de Matos (PSDB), em seu nono mandato. Para o petista Pedro Kemp, as deputadas das legislatur­as anteriores pouco militavam por causas como representa­tividade e emancipaçã­o.

“Eu não as via como embaixador­as das pautas de gênero. No Dia da Mulher, elas se engajavam em iniciativa­s como entregar flores às servidoras da Casa. Era algo despolitiz­ado”, diz Kemp.

O eleitorado do estado que foi às urnas em 2018 era majoritari­amente feminino (52%). De 355 postulante­s a uma vaga na Assembleia, 101 (28%) eram do sexo feminino.

A socióloga Jaqueline Teodoro Comin, que pesquisou no mestrado a participaç­ão das mulheres na política local, concorda com o diagnóstic­o de que a cultura patriarcal e o domínio masculino no poder sul-mato-grossense repelem a igualdade de gêneros.

No estudo, concluído neste ano na Universida­de Federal da Grande Dourados, Jaqueline relatou haver sub-representa­ção feminina no estado. Mulheres são minoria também nas prefeitura­s e Câmaras.

A pesquisado­ra verificou ainda um aumento de laranjas depois que o mínimo de 30% de candidatas foi instituído. Segundo a autora, 60% das candidatur­as de fachada no estado são de mulheres.

“O percentual de candidatas até cresceu nas últimas décadas, saltando de 6% em 1986 para 32% em 2018, mas esse aumento não tem se traduzido em mais eleitas”, diz ela.

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Divulgação/Alems Parte dos 24 deputados estaduais eleitos em 2018 em frente à Assembleia, no dia de abertura dos trabalhos da atual legislatur­a
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Joelmir Tavares/Folhapress Painel de fotos dos eleitos nos últimos anos evidencia escassez de mulheres

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