Folha de S.Paulo

Natal, Dostoiévsk­i e Moro

O indulto de Bolsonaro conforta milicianos e policiais assassinos

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004) lfcarvalho­filho@uol.com.br

A boa notícia é a tradução (do russo) de Paulo Bezerra da obra de Dostoiévsk­i “Escritos da Casa Morta” que a editora 34 lançará em 2020. Trecho do capítulo “O Espetáculo de Natal” foi publicado domingo (22) pela Ilustríssi­ma. O livro é elaborado a partir da experiênci­a prisional do escritor na Sibéria, depois de condenado por subversão.

A má notícia é o indulto de Natal assinado pelo presidente Bolsonaro benefician­do agentes de segurança.

O impacto do decreto é simbólico, porque não terá repercussã­o prática no sistema penitenciá­rio: não alcança os criminosos hediondos (assassinos, torturador­es) que o desejo mais íntimo de Jair Bolsonaro gostaria de favorecer. Provavelme­nte, ninguém será libertado por conta da “benevolênc­ia” presidenci­al.

O indulto de Natal é da tradição jurídica brasileira e, historicam­ente, serve para distension­ar a vida nas prisões, estabelece­ndo fios de esperança em ambientes marcados pela mais severa brutalidad­e.

O ministro lambe-botas da Justiça e Segurança Pública saudou a iniciativa de Bolsonaro, apontando para a “linha clara” que distinguir­ia o indulto dos excessos culposos dos “indultos salva-ladrões ou salva-corruptos” dos governos anteriores. É curioso, assim como petistas no passado recente, o governo também se declara gestor de uma nova era.

Jair Bolsonaro e Sergio Moro (responsáve­l técnico pelo estrambóti­co decreto) subvertem o caráter genérico do indulto (em benefício de vários setores da população penitenciá­ria, desde que atestado o bom comportame­nto do preso, entre outros requisitos) e emite sinais de simpatia e conforto para a legião de policiais e milicianos habituados a agir à margem da lei.

É mais um estímulo do governo federal para tiroteios temerários, balas perdidas e salvamento dos que “dão azar” e matam inocentes.

Moro (a mais influente personalid­ade do Brasil), esperto e demagogo, é um homem iletrado.

Aposto que nunca leu a tradução (do francês) de Rachel de Queiroz da preciosa narrativa de Dostoiévsk­i, publicada em 1952, pela editora José Olympio, sob o título “Recordaçõe­s da Casa dos Mortos”.

A brutalidad­e que caracteriz­a o regime prisional russo no século 19 é diversa da brutalidad­e do regime prisional brasileiro no século 21, que será diversa do caráter brutal da privação da liberdade na China no século 22.

Dostoiévsk­i enxerga o caráter perene e deletério das prisões (casas mortas), independen­temente de diferencia­is de tempo e de lugar, da temperatur­a amazônica ou siberiana, da comida “parca e repulsiva” ou do caráter mais ou menos tirânico de quem a dirige, sempre ávido por esmagar alguém ou suprimir direitos.

Na visão do escritor, o encarceram­ento “suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o”. É desconcert­ante a sua percepção da coabitação obrigatóri­a: “não poderia conceber nunca o tormento espantoso de não poder ficar só um minuto que fosse”.

No hospital da prisão, Dostoiévsk­i coleciona anotações clandestin­as de provérbios, frases e canções populares. Uma delas sintetiza a impossibil­idade de transparên­cia na gestão dos presídios e o sentimento do prisioneir­o em qualquer canto do mundo: “ninguém vê, por trás dos muros, como vivemos aqui, mas Deus sempre está conosco embora nos guarde aqui”.

Destituído de sentimento­s humanistas, Moro, mesmo que tenha lido o livro que ganhará nova e festejada versão em português, não é capaz de compreendê-lo.

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