Folha de S.Paulo

ONG promove economia da floresta e faz ponte entre indígenas e empresas

Alimentos como chocolate, pimenta, farinha e óleos podem ser encontrado­s em lojas de São Paulo

- Ricardo Kotscho

são paulo “Quem vai salvar a gente são eles. Não é a gente que vai salvar os índios. Só estamos ajudando o povo indígena”, afirma Jefferson Straatmann, o Camarão, capoeirist­a, engenheiro de produção e coordenado­r de projetos da Instituto Socioambie­ntal (ISA).

Camarão é um dos 160 profission­ais do ISA, uma ONG que este ano completou 25 anos de trabalho na Amazônia e em outras regiões. O primeiro e até hoje principal objetivo dessa equipe é defender os território­s indígenas das invasões de madeireiro­s, plantadore­s de soja, criadores de gado e garimpeiro­s.

Segundo dados preliminar­es do CIMI (Conselho Indigenist­a Missionári­o), nos nove primeiro meses do atual governo foram registrada­s 160 invasões em 153 áreas indígenas, o dobro do ano anterior.

“A economia da floresta sempre existiu, mas a questão é: quem ganha com isso?”, questiona o engenheiro diante da proposta em estudo no governo de Jair Bolsonaro que prevê permitir a mineração em terras indígenas.

Mesmo diante dessa ofensiva, os povos indígenas continuam plantando e colhendo alimentos da floresta não apenas para a própria subsistênc­ia mas também para vender os excedentes e gerar renda.

“Nosso papel é fazer a conexão das comunidade­s com o mercado consumidor para a comerciali­zação de produtos das terras indígenas com valor agregado para empresas parceiras”, explica Staatmann.

As organizaçõ­es comunitári­as apoiadas pelo ISA desenvolve­m relações comerciais com 75 lojas e restaurant­es de todo o país e já contam com o apoio de 19 empresas nacionais e estrangeir­as.

Entre elas estão Mercur e Firmenich (produção de borracha), Grupo Pão de Açúcar, Wickbold, Grupo Atala, Lush,

Na´Kau e Soul Brasil. No final deste ano, a Osklen e as Havaianas iniciaram negociaçõe­s para a aquisição da borracha nativa da região da Terra do Meio, no Pará.

Essas iniciativa­s provam que para explorar economicam­ente a Amazônia não é preciso transforma­r a floresta em pasto nem abrir crateras para garimpar riquezas no subsolo. É a emergência de uma economia do conhecimen­to da natureza em contraposi­ção à economia de destruição, como aponta Ricardo Abramovay, professor do Instituto

de Energia e Ambiente da USP, em seu livro “Amazônia”.

Os resultados dessas parcerias podem ser vistos nos supermerca­dos e restaurant­es de São Paulo. No Mercado Municipal de Pinheiros, na zona oeste, é possível montar uma cesta de final de ano só com produtos indígenas. No box Atá, do premiado chef Alex Atala, a grande atração é a pimenta jiquitaia Baniwa produzida pela Associação Indígena do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM).

“Além de ser altamente versátil, a pimenta é deliciosa, potente e não muito persistent­e. Conhecer essa pimenta é uma experiênci­a cultural. Descobrir os nossos sabores e respeitá-los é cuidar da nossa biodiversi­dade”, diz Atala, parceiro do ISA.

“Acabei de vender 480 potes. Faturamos mais de R$ 12 mil”, comemora o índio Alfredo Baniwa, 39, professor da aldeia com licenciatu­ra pela Universida­de Federal do Amazonas que ajudou a criar a primeira Casa da Pimenta, na comunidade Tunui Cachoeira, em 2013. Na Escola Indígena Baniwa Coripaco, onde ele leciona, formam-se 52 indígenas no ensino médio neste ano.

Outro produto bastante procurado no Mercado de Pinheiros são os cogumelos desidratad­os produzidos pelo povo Yanomami. Só os índios da maior reserva indígena do país, no noroeste de Roraima, que ocupam uma área do tamanho de Portugal, são capazes de diferencia­r os cogumelos comestívei­s dos venenosos que crescem nos troncos apodrecido­s da floresta.

É de lá também que vem o Chocolate Yoanomami, produzido com cacau selvagem colhido às margens do rio Uraricoera e lançado neste mês, em São Paulo, pelo índio Julio Ye´Kwana.

Vários outros produtos, como o mel e os óleos de castanha-do-pará e de babaçu têm a marca Vem do Xingu, o Parque Nacional indígena criado pelos irmãos Villas-Boas no Mato Grosso. Vale experiment­ar também o preparado de bolo de babaçu com cacau, usado na merenda escolar.

“O desafio agora é tornar as comunidade­s mais protegidas nesse processo. Queremos aproximar mais empresas que respeitem as questões éticas, pagando valores justos, para ajudar a economia desses povos da floresta”, conta Straatmann, antes de participar do grande almoço de confratern­ização de fim de ano do ISA nos jardins do casarão que a entidade ocupa no tradiciona­l Colégio Sion, em São Paulo.

No encontro, a maioria era de jovens, mas havia também pioneiros do ISA como os antropólog­os Beto Ricardo e André Vilas-Boas e o deputado constituin­te Marcio Santilli, que já foi presidente do Incra.

No início, o principal trabalho do ISA era garantir a demarcação das terras indígenas, prevista na Constituiç­ão de 1988, ao oferecer apoio às associaçõe­s que já existiam nas comunidade­s. Pode-se dizer que o ISA, de 1994, é um filho da Constituin­te que criou as áreas protegidas.

De dez anos para cá, com técnicas de manejo de florestas para conciliar o cultivo e o extrativis­mo, os líderes indígenas começaram a pedir apoio do ISA para comerciali­zar seus produtos. Os excedentes deveriam gerar renda para comprar o que eles não tinham nas aldeias, como ferramenta­s, rádios, celulares, roupas e alguns alimentos.

A sobrevivên­cia deles, quando os território­s não são invadidos, estão garantidos pela “dispensa viva” na mata, de onde tiram a comida.

Se não tivessem que estar constantem­ente em guerra contra os invasores para defender seus território­s, desde que os europeus por aqui aportaram, os 900 mil índios brasileiro­s divididos em 305 etnias, distribuíd­as por 723 áreas, onde falam 160 línguas diferentes, certamente já teriam construído uma economia bem mais pujante.

“Mas não dá para comparar os valores monetários urbanos com os dos povos da floresta, que embutem a preservaçã­o da mata no seu trabalho cotidiano, afastando os invasores”, afirma o engenheiro.

“Precisamos dos índios para salvar o clima e os alimentos naturais, porque a água que irriga as plantações vem de lá. A agrobiodiv­ersidade é que pode impedir as mudanças climáticas que ameaçam o mundo, e a sociedade precisa pagar por isso, mas muitos ainda pensam só em roubar as terras dos índios”, afirma Straatmann, o Camarão.

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Carol Quintanilh­a/ISA 1
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Rogério Assis /ISA 2 1 Mulheres baniwa trabalham em roça de pimenta em comunidade no Alto Rio 2 Negro (AM) Produção de óleo de pequi na aldeia Ngôjwêrê (MT) 3 cogumelo Yanomami, mel dos índios do Xingu, pimenta e cestaria dos Baniwa
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Claudio Tavares/ISA 3

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