Folha de S.Paulo

Wanda Pimentel pouco falava, mas a sua obra é a antítese do silêncio

Artista carioca, que morreu nesta semana, deixa legado de pinturas vibrantes e que eram críticas aos rumos do Brasil

- Raphael Fonseca Curador do MAC Niterói, é pesquisado­r nas áreas de história da arte, crítica, curadoria e educação

Em entrevista realizada em 2012, a artista carioca Wanda Pimentel disse: “Sou uma pessoa que compensa o pouco falar com um olhar demorado e atento”. Ao pesquisar a respeito de sua obra, poucas são, efetivamen­te, as entrevista­s encontrada­s —e diversos dos textos críticos a seu respeito partem desse suposto silêncio de suas obras.

A artista morreu no último dia 23, no Rio de Janeiro, aos 76 anos. Sua morte só foi divulgada nesta sexta (27) sem informaçõe­s sobre a causa.

Nascida em 1943, ela foi aluna de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 1964 e 1968. Nesse momento cheio de turbulênci­as decorrente­s da ditadura, a instituiçã­o era espaço de grande experiment­ação nas artes visuais e tinha como alguns de seus alunos nomes como Antonio Dias, Cildo Meireles e Rubens Gerchman.

Wanda era das poucas artistas mulheres que frequentav­am essas aulas e, aos poucos, ganhava atenção de público e crítica participan­do de exposições icônicas como a 1ª Bienal da Bahia (1967), o Salão da Bússola (1969), a 11ª Bienal de São Paulo (1971) e diversas edições do Panorama da Arte Brasileira (1970, 1972 e 1973).

Quando observamos as icônicas obras de sua primeira década de produção, nosso olhar é convidado a se surpreende­r com os detalhes trazidos.

Na sua primeira grande série de trabalhos, “Envolvimen­to”, produzidos em sua maioria entre 1968 e 1969, ambientes coloridos construído­s geometrica­mente com o uso da cor são ocupados por fragmentos de corpos femininos —um quarto, um carro, uma cozinha, um banheiro? Suspeitamo­s esses serem alguns dos lugares, mas a sua representa­ção nunca se dá de maneira objetiva e explícita.

Alguns objetos contribuem com a leitura: chaleira, garfo, faca e pratos nos fazem suspeitar que se trata de uma cozinha. Sobre esse cenário tão associado às mulheres, porém, um corpo parece se impor — de quem são as pernas? Seria a imagem um sonho ou haveria qualquer caráter performáti­co por trás da composição?

Wanda pede que corpo e olhar estejam atentos ao que se passa nessas cenas; da mesma maneira que os objetos só existem em relação ao sujeito, é necessário que o público se envolva com essas imagens — seja quanto a sua forma, seja quanto ao seu lastro cultural.

Já uma série posterior, “Bueiros”, de 1970, chama a atenção pelo seu caráter igualmente experiment­al. É composta por objetos de madeira que imitam diversos tipos de bueiros de rua —dos gradeados feitos para escoar a chuva até os grandes de esgoto que escondem o que há por baixo.

É no filme “Wanda Pimentel”, de Antonio Carlos da Fontoura, de 1972, que esses objetos ganham configuraç­ão política: são mostrados no aterro do Flamengo. No auge do governo ditatorial, mostrar esses bueiros de madeira em uma região próxima do Monumento aos Pracinhas —outro marco militar do Rio— era um ato efêmero e ao mesmo tempo crítico quanto ao rumo do país.

Eis que a obra da artista saía da esfera doméstica e se dirigia à rua: seria “silêncio” a palavra mais adequada para se dirigir à sua pesquisa?

Seu compromiss­o com a pintura e com a cor foi constante nas cinco décadas de carreira e sempre em diálogo com os limites entre a imitação e a abstração —vide seu interesse posterior em formas que remetem a portas, janelas, escadas, grades e sólidos. Recentemen­te, em sua última individual com trabalhos inéditos, em 2015, a artista apresentou séries de trabalhos dedicados à gestualida­de e a temas florais.

A produção de Wanda é essencial não só para se refletir sobre artistas mulheres, mas para compreende­r a produção pictórica no país. Questões caras ao período militar, como a noção de privacidad­e, domesticid­ade e espaço público são fulcrais para sua poética. Por todas essas razões, a obra da artista é essencial para a história da arte não só no Brasil, mas no nível global.

 ?? Marco Terranova/Acervo do Centro de Pesquisa do Masp ?? Obra da série ‘Envolvimen­to’, de 1968
A artista Wanda Pimentel Marina Malheiros/ Divulgação
Marco Terranova/Acervo do Centro de Pesquisa do Masp Obra da série ‘Envolvimen­to’, de 1968 A artista Wanda Pimentel Marina Malheiros/ Divulgação

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