Indiferença de esquecidos pelo sistema ajuda Trump
Sem esperança de que processo político possa mudar suas vidas, moradores pobres de cidades do Meio-Oeste dos Estados Unidos mergulham na apatia que pode ajudar atual presidente a se reeleger
No último capítulo da série sobre o chamado Cinturão da Ferrugem, a Folha mostra como a apatia dos pobres do Meio-Oeste americano pode favorecer a tentativa de reeleição de Donald Trump em 2020.
“O sistema escolhe. Meu voto não conta”, diz John Erteaga, desempregado. O Cinturão é uma área que trocou os democratas pelos republicanos em 2016, tendo sido central para a vitória de Trump.
meio-oeste americano Inspirada pelo fotógrafo Robert Frank, que rodou os EUA nos anos 1950, a Folha percorreu de carro, em 11 dias, quatro estados do Cinturão da Ferrugem, área de tradição democrata que trocou de lado em 2016 e determinou a vitória de Donald Trump. Em três capítulos, “Os Americanos” mostra o polarizado discurso que invadiu a região decisiva para a disputa de 2020. Leia a seguir a parte final da série.
Dia 7 ‘O sistema escolhe. Já está decidido, e meu voto não conta’
Chegamos a Flint antes do horário programado. Ainda era cedo no nosso sétimo dia de viagem e quase não se via carros ou pedestres na avenida principal da cidade.
Estacionamos atrás da Igreja Metodista Lincoln Park, onde, de segunda a sábado, é servido almoço de graça “para quem estiver com fome”.
Dustin Huffman é um dos que vão à igreja seis vezes por semana, para comer e pegar roupas. Aos 39 anos, dez deles na prisão, afirma que não consegue emprego formal desde que saiu da cadeia, em 2015. Desistiu de procurar.
Para ganhar US$ 10 por dia (cerca de R$ 42), poda árvores no verão e tira neve das ruas no inverno. Mas não é sempre que consegue serviço.
Seus atentos olhos azuis não se interessam por política. Não votou em 2016 e não pretende votar em 2020. Mas faz críticas a Donald Trump.
“Quero que ele saia do cargo. Ele é racista, ataca mexicanos, pessoas do Oriente Médio e negros, faz com que eles se sintam diminuídos. E aí, quando alguém pergunta sobre o assunto, diz: ‘Nunca falei isso’.”
Huffman se ofereceu para conversar após Jackie Robertson anunciar nossa presença no refeitório. A voluntária de 67 anos organizara sozinha as refeições que seriam distribuídas para cerca de 50 pessoas naquele 28 de outubro.
Ela temia que os frequentadores ficassem constrangidos com a exposição e pediu para que esperássemos manifestações espontâneas.
De cabelos loiros, amarrados para mostrar os brincos em formato de abóbora —era quase véspera do Dia das Bruxas—, Ola Roberts, 56, quis contar sua história.
“Na verdade, venho aqui por causa das pessoas. Gosto de conversar e me divertir com elas.Moroperto,aregiãoéboa.”
“Mas tem muita prostituição e traficantes”, interrompe Nejet Ward. “As prostitutas ficam lá, mas não me incomodam. Eu ignoro, só não converso com elas”, rebate Roberts.
A estratégia de ficar alheia à situação será usada pela americana na eleição presidencial. Ela diz que pretende ignorar a votação do dia 3 de novembro apesar dos problemas que vê no país e no presidente.
“Sou registrada para votar, masnãovou.Elesfalamquevão fazer, mas não fazem. Por que pegam o trabalho se não vão cumprir o que prometeram?”
Trump é beneficiado por esse tipo de eleitor. Sua estratégia é manter fiel a base de 2016, reforçando um discurso conservador, anti-imigração e salpicado de índices econômicos que mantêm os EUA em situação confortável em meio à crise mundial.
O presidente estimula eleitores a repetirem o voto nele em 2020 ao mesmo tempo em que se empenha para que democratas frustrados com o partido não encontrem alguém que os motive a ir às urnas.
Em um país onde o voto não é obrigatório, mais do que animar americanos a votar nele, Trump precisa que eles não apoiem seu adversário.
Acompanhamos Roberts e Ward até o lado de fora do refeitório, onde é possível identificar os elementos descritos minutos antes pelas duas amigas. Mesmo depois do meio-dia, a larga avenida onde fica a igreja continuava pouco movimentada, com a maior parte das lojas fechada e quase ninguém na rua.
O principal problema hoje, diz a policial Candace Burton, que por vezes faz a segurança durante a distribuição de refeições, é o tráfico e o consumo de heroína, que provocam mortes por overdose em Flint.
“Isso aqui está virando uma cidade-fantasma. Sem emprego, as pessoas vão embora. E aí os traficantes tomam conta”, afirma John Erteaga, 55.
Desempregado, ele é mais um dos que buscam seis vezes por semana o almoço na igreja e, de tempos em tempos, faz serviços de limpeza e manutenção a pedido do pastor.
Mesmo com as aulas de mecânica que cursou ao longo da juventude, diz nunca ter conseguido um emprego formal porque é epilético.
Com o dinheiro que recebe do seguro social do governo, paga os remédios de que precisa e as contas do porão da casa de amigos, onde mora com a filha de nove anos.
“Aqui ou você paga o aluguel ou a comida”, sentencia.
Erteaga também não acredita que a política pode transformar sua realidade. Diz rejeitar Trump, mas não vai votar em ninguém no ano que vem. “O sistema escolhe quem será o presidente, e hoje é o cara com dinheiro, ou seja, Trump. Já foi decidido, meu voto não conta.”
AsmáximasbináriasdeErteaga pareciam o resumo da nossapassagempelacidade.Minutos antes de a entrevista ser interrompida por dois disparos, ele havia soltado mais uma. “Em Flint, você vai morrer de chumbo:oudeáguaoudetiro.”
A cidade ainda não superou a crise de contaminação. Em 2014, depois de mudanças na abandonada rede de distribuição, os canos carcomidos pela ferrugem afetaram com chumbo a água potável de toda a população.
A criminalidade alta, que já colocouFlintnopostodelugar maisviolentodosEUA,édecorrente do desemprego e de dé