Folha de S.Paulo

Cultura tem ano sem seu ministério, com tentativa de censura e maré conservado­ra

Primeiro ano da Cultura sob Bolsonaro tem fim de ministério, mudanças na Rouanet, caça a temas sensíveis e influência evangélica e conservado­ra sobre postos importante­s

- Gustavo Fioratti e Bruno Molinero

são paulo As ações do governo na Cultura em 2019 tiveram duas tônicas —a censura voltou a ameaçar a livre expressão de artistas subsidiado­s por verba pública, com agressivid­ade que não se via desde a redemocrat­ização, e a indústria do audiovisua­l, que vinha registrand­o cresciment­os sucessivos e levava o cinema nacional para os principais festivais do mundo, foi freada com paralisaçõ­es e cancelamen­tos de prêmios e patrocínio­s.

A extinção do Ministério da Cultura, definido no fim de 2018 e confirmado bem no início deste ano, já dava sinais de uma revisão histórica. Represento­u o ponto inicial de uma coleção de conflitos entre a classe artística e o governo.

Criado em 1985 pelo então presidente José Sarney, a instituiçã­o foi transforma­da na Secretaria Especial da Cultura, subordinad­a à pasta da Cidadania, sob comando do médico Osmar Terra. Em novembro, passou a fazer parte do Ministério do Turismo.

Já entre as primeiras medidas para o setor, o presidente Jair Bolsonaro questionou o patrocínio das empresas estatais à cultura. Reduziu o montante de incentivos na Caixa Cultural, no Banco do Brasil e nos Correios.

O governo anunciou ainda que a fatia mais robusta, vinda da Petrobras, deixaria de existir para ser realocada para programas de educação e produção tecnológic­a. O corte provocou preocupaçã­o, sobretudo nas direções dos grandes festivais de cinema.

O resultado da interrupçã­o se consolidou no transcorre­r de todo o ano, com a redução significat­iva das programaçõ­es do Festival do Rio e do Anima Mundi, entre outros.

A leitura de que Bolsonaro promoveria um desmonte foi imediata e ganhou as redes. Em abril, uma nova mudança profunda na política de incentivos públicos atingiria uma parte significat­iva do mercado, o das artes cênicas.

Desde as eleições, Bolsonaro atacava a Lei Rouanet, questionan­do os subsídios públicos a produtores que, ele supunha, já andavam com pernas próprias. O teto de incentivos da lei caiu de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão.

As mudanças geraram protestos principalm­ente dos produtores de espetáculo­s musicais, que não ficaram dentro das exceções —planos anuais de museus, por exemplo, continuara­m podendo captar fora do novo limite.

Neste fim de ano, o governo reconheceu o erro e divulgou que espetáculo­s musicais poderiam ter um teto superior, a princípio de R$ 10 milhões.

Também em abril, houve a paralisaçã­o da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, depois que o Tribunal de Contas da União questionou a metodologi­a usada nas prestações de contas de produções incentivad­as. Obras aprovadas em editais tiveram de esperar a situação ser regulariza­da para ter acesso a verbas retidas.

Em agosto, o governo começou a pôr em prática a retaliação a obras com temas que desagradav­am a ala bolsonaris­ta, vetando trabalhos que falavam sobre regimes autoritári­os, sexualidad­e e questões de gênero. Naquele mês, houve o cancelamen­to de um edital da Ancine que incluía incentivo a projetos para TVs públicas com temática LGBT —era o início de uma série de atos de censura que atingiriam também os programas de incentivos das empresas estatais.

Houve, por exemplo, cancelamen­tos de espetáculo­s como “Abrazo”, da companhia Clowns de Shakespear­e, e “Gritos”, da Dos à Deux. A primeira trazia a história de um governo que proibia cidadãos de falar. A segunda era protagoniz­ada por uma travesti.

Em setembro, a Folha revelou que a Caixa havia implementa­do um sistema de censura prévia, determinan­do inclusive que funcionári­os investigas­sem as redes sociais dos artistas que se inscreviam em programas de incentivo.

Embora as restrições abrangesse­m um cenário mais amplo, foi por causa do corte do edital da Ancine, em agosto, que Henrique Pires, então secretário da Cultura, pediu seu afastament­o. “Para ficar e bater palma para censura, prefiro cair fora”, ele disse, ao pedir a exoneração. Pires foi substituíd­o por Ricardo Braga, que também deixou a subpasta e foi substituíd­o pelo dramaturgo bolsonaris­ta Roberto Alvim.

Alvim havia se aproximado de Bolsonaro com entrevista­s polêmicas que agradaram o presidente. Em junho, ele foi nomeado diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte e passou a usar as redes para defender uma guerra cultural contra o que avaliava ser uma visão da esquerda no campo das artes.

Teve grande repercussã­o o episódio em que o diretor atacou Fernanda Montenegro, chamando a atriz de sórdida e de mentirosa.

Depois de assumir a secretaria, Alvim iniciou um processo de mudança nos postos da pasta e de entidades subordinad­as —chegaram ao governo novos nomes responsáve­is por áreas como promoção e diversidad­e cultural, fomento e incentivo à cultura e economia criativa. Alvim trocou também o comando da Fundação Palmares, da Biblioteca Nacional e da Funarte.

O apresentad­or e pastor Edilásio Barra, conhecido como Tutuca, por exemplo, assumiu o cargo que controla o gerenciame­nto de R$ 724 milhões do Fundo Setorial do Audiovisua­l. Já um dos nomes mais controvers­os, Sérgio Nascimento de Camargo, ficou com a Fundação Palmares e se declarou contra o Dia da Consciênci­a Negra e as cotas raciais —veja ao lado outros nomes.

A censura atingiu também a esfera municipal. Em setembro, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do PRB, mandou fiscais à Bienal do Livro da cidade para recolher uma HQ da Marvel que trazia um beijo gay. O caso chegou ao Supremo, que proibiu a apreensão de obras no evento.

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Marcos Mesquita/Divulgação Musical ‘O Fantasma da Ópera’, que teve captação aprovada de R$ 28,6 milhões na Lei Rouanet
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Divulgação Cena da animação brasileira ‘O Menino e o Mundo’, que foi patrocinad­a pela Petrobras e concorreu ao Oscar

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