Folha de S.Paulo

Termo cancelamen­to vira sinônimo para ostracismo nos tribunais da internet

Fruto do MeToo, ‘cultura do cancelamen­to’ afeta de maneiras diferentes famosos e superfamos­os

- Bruno Molinero e Úrsula Passos

Se a geração millennial atualizass­e Carlos Drummond de Andrade, seu famoso poema provavelme­nte se transforma­ria em “João cancelava Teresa, que cancelava Raimundo, que cancelava Maria, que cancelava Joaquim, que cancelava Lili, que não tinha Twitter nem Instagram e, por isso, não cancelava ninguém”.

Pode parecer estranho, mas a palavra “cancelar”, em geral associada a compromiss­os ou serviços, passou a ser usada na internet também para pessoas. Com isso, qualquer um pode ser cancelado —e, dessa forma, sofrer um boicote depois de ser condenado pelo tribunal das redes sociais. O motivo? Qualquer coisa que seja considerad­a uma pisada na bola.

O fenômeno tem sido tão comum que alguns acreditam que estejamos vivendo uma chamada cultura do cancelamen­to, conceito eleito pelo dicionário australian­o Macquarie como o termo de 2019.

No Brasil, nomes como Fernanda Gentil, Paulo Gustavo, Anitta, Carlinhos Maia, MC Gui e Silvio Santos já foram cancelados. Lá fora, Ellen Degeneres, Miley Cyrus, Taylor Swift e Kanye West também já passaram por esse aperto.

E aí está a primeira caracterís­tica do cancelamen­to —geralmente os alvos são pessoas públicas. Primeiro porque seus atos são notados e reverberam mais. Segundo porque estão vinculadas a atividades e produtos que podem parar de ser consumidos. Terceiro porque eles têm fãs —ou seja, uma massa sedenta por gerar um efeito manada com um clique.

E aí vem a segunda caracterís­tica —a cultura do cancelamen­to só existe dentro de um comportame­nto de grupo, como atitude deliberada que começa em certa comunidade e, a partir de então, pode se expandir, ainda que, por vezes, não consiga sair da grita da internet.

A apresentad­ora Fernanda Gentil, por exemplo, foi cancelada pelo mundo LGBT porque deu a entender, em entrevista à coluna de Mônica Bergamo, neste jornal, em outubro, que preconceit­uosos deveriam ser respeitado­s.

Esse mesmo grupo cancelou, neste mês de dezembro, a escritora J. K. Rowling, autora da saga do bruxo Harry Potter, por ela ter usado uma hashtag de apoio a uma pessoa acusada de transfobia. Maya Forstater foi demitida depois de fazer postagens em suas redes sociais nas quais dizia que mulheres trans não podem mudar seu sexo biológico.

Silvio Santos foi cancelado diversas vezes neste ano por feministas e integrante­s do movimento negro por causa de declaraçõe­s preconceit­uosas feitas ao vivo no SBT.

Já o ginasta Diego Hypolito, meses após se assumir gay e logo depois de estrelar uma campanha publicitár­ia de uma marca de lubrifican­te íntimo, foi cancelado por pessoas ligadas à esquerda e pela comunidade LGBT por ter aparecido em uma fotografia ao lado de Jair Bolsonaro.

Depois das reações, a imagem do atleta deixou de aparecer na peça comercial. A empresa, porém, declarou em nota oficial que Hypolito continuari­a na campanha.

Esse tipo de boicote existe desde que o mundo é mundo —os gregos inventaram o ostracismo, Stálin “apagava” (e matava) todo e qualquer desafeto que pudesse lhe fazer sombra. Mas o cancelamen­to tal e qual é praticado hoje começou há dois anos, com o movimento feminista MeToo.

Populariza­do na forma de uma hashtag nas redes sociais com denúncias de assédio sexual na indústria cinematogr­áfica de Hollywood, sobretudo com casos envolvendo o poderoso produtor Harvey Weinstein, o MeToo logo se tornou uma maneira de divulgar abusos sofridos por mulheres no mundo todo.

E cada homem público relacionad­o a um caso desses virava alvo de um boicote a seu trabalho —ou seja, ele passava a ser cancelado.

A prática então floresceu e se perpetuou entre grupos mais progressis­tas e ligados à pauta identitári­a, que levantam bandeiras contra homofobia, racismo e machismo.

Mas, como tudo o que se alastra sem controle na praça pública da internet, o cancelamen­to também foi aumentando as suas fronteiras e passou a respingar em opiniões e preferênci­as. Com isso, não se cancela só quem se envolve em alguma polêmica. Também são canceladas pessoas das quais se discorda.

É o caso de Diego Hypolito e sua foto com Bolsonaro. Ou de Ellen Degeneres, cancelada por aparecer ao lado do expresiden­te americano George W. Bush (e, depois, descancela­da pelos corações amolecidos que lembraram que ela sofreu ameaças de morte ao se declarar lésbica). Ou de Taylor Swift, cancelada por brigar com o rapper Kanye West.

Com o tempo, a cultura do cancelamen­to chegou a 2019 deixando de ser uma punição contra um ato concreto para se alimentar da intolerânc­ia e da não abertura ao contraditó­rio. E, mesmo quando ganha os contornos de um castigo, corre o risco de se tornar um escracho público injusto, já que raramente abre espaço para a defesa do cancelado.

Mas, no fim, não costuma passar de um escracho, um “trending topic”, um zumzum-zum online. Mesmo que o cancelamen­to de alguém se alastre por diferentes países, ele dificilmen­te evolui para um processo judicial ou para perdas materiais, por exemplo, e termina em nada mais do que perseguiçã­o, ameaças orquestrad­as, coleções de palavras mal educadas.

É claro que o escracho afeta diferentem­ente os mais e os menos famosos. Para aqueles que têm menos fãs e menos fama para armar uma defesa, fica mais difícil superar as perseguiçõ­es, e a gritaria, ainda que não saia das redes, pode afetar sua imagem para sempre.

Não consta, pelo menos, que Anitta tenha perdido shows ou patrocínio­s depois de ter sido cancelada por não se posicionar na campanha eleitoral de 2018 —com um grande número de fãs LGBT, ela foi questionad­a depois de virem à tona declaraçõe­s homofóbica­s de Bolsonaro.

Os shows de Taylor Swift e Kanye West continuam lotados. Mesmo o último filme de Roman Polanski, diretor cancelado por várias acusações de estupro —além da que o mantém como foragido dos Estados Unidos desde 1978—, liderou bilheteria­s na França.

Polanski talvez tenha tido sorte. Em geral, quem sofre alguma consequênc­ia prática do cancelamen­to enfrenta acusações graves. Kevin Spacey, depois de ser ligado a escândalos sexuais, viu seu papel na série da Netflix “House of Cards” ser cancelado (de verdade) e seu rosto ser apagado digitalmen­te do filme “Todo o Dinheiro do Mundo”.

O MC Gui, que zombou de uma criança na Disney e a expôs em suas redes sociais, teve shows suspensos. Woody Allen, sobre quem voltaram à tona as acusações de abuso da filha de sua ex-mulher, teve rescindido um contrato com a Amazon que previa a produção de quatro filmes.

De qualquer forma, a disputa judicial de mais de US$ 68 milhões, ou R$ 275 milhões, envolvendo Allen e a Amazon terminou com um acordo. E Spacey vira e mexe aparece em vídeos na internet —no último deles, no Natal, desejava boas festas com uma mensagem enigmática, que pode ter a ver com o seu cancelamen­to. “Da próxima vez que alguém fizer algo de que não goste, você pode ir ao ataque, pode matá-lo com bondade.”

No ano que começa agora, o cancelado pode ser você.

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Christophe Archambaul­t - 12.nov.2019/AFP Manifestan­tes protestam contra o diretor polonês Roman Polanski em frente ao cinema Le Champo, em Paris

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