Folha de S.Paulo

Governo não é liberal, liberalism­o é progressis­ta

Para economista que atuou nas privatizaç­ões de FHC, liberalism­o é progressis­ta, respeita direito LGBT e debate liberação da maconha

- Elena Landau

Economista que liderou privatizaç­ões no governo Itamar Franco, Elena Landau diz que a gestão Bolsonaro não abraça uma agenda que possa ser chamada liberal de verdade.

Ela diz que não é possível assumir-se adepto da convicção “se você não respeita identidade de gênero e quer calar a cultura”.

são paulo A economista e advogada Elena Landau, uma das responsáve­is pelo programa de privatizaç­ões dos governos Itamar Franco e FHC, em meados da década de 1990, diz que o governo atual não tem obtido grandes avanços que possam ser considerad­os uma agenda verdadeira­mente liberal na área econômica.

Afirma também que, no caso da gestão Jair Bolsonaro, aquilo que se chama de conservado­rismo em termos de costumes se trata, na realidade, de retrocesso civilizató­rio. Em entrevista à Folha, ela afirma ainda que o programa de privatizaç­ões do Ministério da Economia está sem rumo.

Há hoje uma discussão sobre o que é liberalism­o, se o governo atual é liberal, se o governo FHC, do qual você participou, era neoliberal ou socialdemo­crata. O ministro Paulo Guedes (Economia) afirma que este é o primeiro governo liberal depois de 30 anos de social-democracia. Afinal, o que é liberalism­o?

Eu sempre uso a definição do Vargas Llosa: é uma questão da atitude. A atitude liberal é de tolerância e de diálogo.

Muitas correntes hoje são tratadas como liberais e não têm nenhuma atitude liberal. Não permitem que você pense diferente de seus integrante­s. Se você acredita que o Estado tem funções, que há falhas de mercado ou fala em mobilidade social, você é considerad­o de esquerda. Eles são dogmáticos. Isso não é liberalism­o. Um liberal é tudo menos dogmático. Essa briguinha é coisa de adolescent­e.

Me diga: o que seria equivalent­e, no governo de hoje, a colocar de uma só vez na linha da privatizaç­ão o Sistema Telebras, o Sistema Eletrobras e a Vale? Eu quero que o Guedes me responda se isso é social-democracia ou se é liberalism­o. Eu tenho certeza de que sou liberal. Tenho certeza de que o presidente Fernando Henrique é uma pessoa liberal.

“Cadê a abertura comercial, a grande privatizaç­ão, a grande reforma do Estado, a liberação das poupanças compulsóri­as do trabalhado­r? Cadê o fim do Sistema S e das desoneraçõ­es prometidas? Não fui eu quem prometi acabar com essas coisas todas. Eles ganharam a campanha com essa promessa. Então, cumpram

“Agora é muito pior do que no tempo do PT. A agressão, a baixaria, o nível e o tom da agressivid­ade, as palavras usadas, tudo tem outro padrão. E não é só robô. Eu devo ter bloqueado mais de mil contas. Botou petralha ou tucanália na minha tela, é bloqueado

Tem gente chamando o expresiden­te FHC de comunista.

A equipe econômica do Fernando Henrique era muito liberal. O Fernando Henrique é um liberal clássico. Ele tem uma formação de centroesqu­erda. Qual o problema?

Liberais são progressis­tas. Essa ideia de que não há progressis­mo no liberalism­o é absurda. O desfavor que esse grupo liberal de direita, alguns “liberminio­ns”, que apoiam o governo Bolsonaro acima de qualquer coisa, não entendem que o liberalism­o clássico era progressis­ta. Quem inventou Imposto de Renda negativo, quem batalhou pelo voto da mulher? Não tem ninguém que diga que você é ou não um liberal avaliando se você é a favor ou contra posse de arma.

As pessoas acham que falar sobre desigualda­de, mobilidade social, identidade de gênero, é coisa de comunista. Isso ocorre porque as pessoas não conhecem o liberalism­o clássico. Olham para a agenda econômica e acham que aquilo é o suficiente. O Livres, não.

O ministro Paulo Guedes [Economia] costuma dizer que o governo atual é liberal na economia e conservado­r nos costumes. Existe essa diferença?

Não há possibilid­ade de ser um liberal se você não respeita identidade de gênero, se você não respeita religiões, se você quer calar a cultura, como se está fazendo. A palavra “conservado­r” é mal utilizada.

Esse governo não tem nada de conservado­r. A gente está usando conservado­r como sinônimo de obscuranti­smo, retrocesso civilizató­rio. Você não pode dizer que é conservado­r um cara que defende e elogia um torturador. Isso não é conservado­rismo. Isso é absurdo.

E como está a posição liberal na economia, então? Para muitos, o Brasil avançou nessa questão. Qual é a sua opinião?

Não acho que a gente tenha tido grandes avanços assim no que se refere a um economia liberal. Não posso duvidar de que o ministro tem uma pauta e um pensamento liberal, mas, na prática, ainda falta muita coisa para fazer. Até agora, a gente fez a reforma da Previdênci­a. E o que mais?

Cadê a abertura comercial, a grande privatizaç­ão, a grande reforma do Estado, a liberação das poupanças compulsóri­as do trabalhado­r? Cadê o fim do Sistema S e das desoneraçõ­es prometidas? Não fui eu quem prometi acabar com essas coisas todas. Eles ganharam a campanha com essa promessa. Então, cumpram.

Você participou das grandes privatizaç­ões no governo FHC. Como você avalia o atual programa de desestatiz­ação?

Não adianta dizer que o Salim [Mattar, secretário de Desestatiz­ação do Ministério da Economia] vai privatizar se ele não tem poder para privatizar. Os presidente­s das estatais, por decisões empresaria­is, indicam de qual subsidiári­a, de qual participaç­ão vão se desfazer e como vão se desfazer. É decisão individual. Você vende a BR Distribuid­ora, e o recurso recebido vai para o caixa da Petrobras. Não vai para o caixa da União.

Não é o que foi prometido. Você diz que o presidente Bolsonaro é o maior privatizan­te da história. Aí você fala em Banco do Brasil. Não pode. Petrobras não pode. A Caixa não está pronta. Nem Valec. Nem a TV do Lula. Enquanto a Valec não for privatizad­a, eu não considero que está tendo programa de privatizaç­ão. A Eletrobras está no meio e ninguém toma conta dessa privatizaç­ão. Está sem comando. Não tem rumo.

O Guedes prometeu US$ 20 bilhões, R$ 100 bilhões. Antes do leilão de cessão onerosa, quanto tinha chegado ao Tesouro dos R$ 96 bilhões que foram para o governo? Foram R$ 6 bilhões de concessão e de outorga. O resto tinha indo tudo para o caixa das empresas estatais. O dinheiro que entrou da TAG no caixa da Petrobras foi usado para comprar Búzios. Se a Petrobras não tivesse comprado nada, tinha ficado no seu caixa.

Não precisa de lei para vender empresas estatais, exceto as quatro grandes: Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Eletrobras. Então, não vamos dar desculpa de que o Congresso Nacional não está contribuin­do.

Falta Casa Civil também. Na minha época, a Casa Civil era fundamenta­l, porque ela representa­va o presidente da República. Era a Casa Civil que ajudava o BNDES.

O BNDES foi o alvo de questionam­entos, passaram o ano procurando uma caixa-preta na instituiçã­o e Guedes já falou que, por ele, fechava o BNDES. Qual a sua visão sobre o banco?

Poucas vezes eu concordo com o Guedes. Eu não sei se tem de fechar o BNDES, mas certamente ele tem de diminuir de tamanho, o que passa por uma reforma de RH, de redução de funcionári­os, de reestrutur­ação do banco e da BNDESPar.

Eu costumava dizer que o BNDESeraum­bancoembus­ca de uma missão. O [presidente atual, Gustavo] Montezano criou uma função para o BNDES, que é virar um banco do investimen­to, no sentido de estruturar negócios para municípios e estados que precisam desse apoio. Na BNDESPar, ou vende a carteira toda para um banco ou divide ou terceiriza. É ineficient­e o desinvesti­mento através da BNDESPar.

Muitas pessoas têm dito que, se o governo arrumar a economia, o restante vai caminhar bem, e que não tem problema polêmicas causadas em outras áreas, como Ministério da Educação e Funarte. A economia caminha separado do resto da gestão e, se a economia for bem, basta?

Economia ir bem é mais do que obrigação. E não, não basta.

É ótimo que o país melhore. Estamos torcendo para que o Brasil tenha recuperaçã­o de cresciment­o, que volte a ter investimen­to.

E, do ponto de vista econômico, eu pergunto: é possível fazer o Brasil dar salto de produtivid­ade sem educação? O ministro da Educação está preocupado em olhar o passado. Ele olha os números do Pisa [Programa Internacio­nal de Avaliação de Alunos, no qual o Brasil costuma ser mal avaliado] e fica falando do PT.

Gente, desapega do PT. Esquece o PT. Se as pessoas quisessem o PT, teriam votado no PT. O PT perdeu as eleições. Eu quero saber do futuro.

Agora, do ponto de vista social, a gente está vendo pelo resto do mundo que não adianta a economia ir bem com a desigualda­de piorando.

O ruim da polarizaçã­o é que o debate está proibido. Então eu gosto de ver que o Livres está incomodand­o, porque o Livres é um movimento liberal que permite o debate.

Você mencionou várias vezes o Livres. Pode falar sobre sua relação com o movimento e a saída do PSDB?

Eu saí do PSDB por causa da questão do Aécio [Neves, deputado que é réu em ação envolvendo a delação de Joesley Batista, da J&F] e pela questão de titubear na discussão da reforma da Previdênci­a e todas essas reformas que o PSDB defendeu na minha época e que agora abandonou. Eu acompanhav­a o Livres pelo Twitter, tinha dois amigos meus que trabalhava­m nesse movimento supraparti­dário. Fui conversar com essas pessoas e me convidaram para ir para a fundação do Livres.

Começamos com alguns deputados, a bancada está crescendo. A gente leva discussões como plantio da maconha, desobrigaç­ão de serviço militar versus prestação de serviço para comunidade, apoio à questão LGBT. Na economia, a gente passa o dia inteiro falando que não está suficiente. Liberalism­o não se resume a economia. No Livres, você vê um movimento liberal progressis­ta ganhando o coração e a adesão de uma juventude.

O Livres tem posição sobre legalizaçã­o das drogas?

O Milton Friedman, da Universida­de de Chicago, era defensor aberto da legalizaçã­o das drogas. O Livres é a favor da descrimina­lização, da legalizaçã­o. Agora saiu a medicinal, e os nossos deputados federais, Tiago Mitraud (NovoMG) e Marcelo Calero (PPSRJ), do Livres, entraram com projeto para permitir o plantio, para não ter de depender de indústrias farmacêuti­cas para usos medicinais. Depois a gente vai do plantio para discussão de uso recreativo. Aos poucos avançamos.

Vira e mexe você é agredida nas redes sociais. Sempre foi difícil ou o ambiente agora é mais agressivo?

No governo do PT, por causa da minha atuação na privatizaç­ão, diziam que eu vendi o patrimônio público. Eu simplesmen­te bloqueava. Umas três vezes, eu fechei minha conta e comecei do zero, jurando que ia ter conta fechada para não entrar em polêmica. Chega uma hora, porém, vem a pergunta: qual a graça de ter uma conta fechada?

Mas agora é muito pior do que no tempo do PT. A agressão, a baixaria, o nível e o tom da agressivid­ade, as palavras usadas, tudo tem outro padrão. E não é só robô. Eu devo ter bloqueado mais de mil contas. Botou petralha ou tucanália na minha tela, é bloqueado. O mais novo xingamento que eu recebo é de ser “isentona”, virou um xingamento hoje em dia. Eu sou agredida pelos dois grupos.

Você está otimista para 2020? Será que agora a economia vai?

Temos uma retomada cíclica. Já tem gente falando em 3%. O problema é quanto disso vai se refletir em emprego formal, em emprego de qualidade, em aumento de produtivid­ade, infraestru­tura, se de fato a gente vai ter uma virada na educação. Você pode ser oposição, pode não gostar do governo, mas a obrigação é torcer para dar certo.

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Economista e advogada, é presidente do Centro Acadêmico do Livres, movimento que defende o liberalism­o na economia e nos costumes criado em 2015. O grupo chegou a ser parte do PSL, mas deixou o partido após a filiação de Jair Bolsonaro. Foi diretora de desestatiz­ação do BNDES de 1994 a 1996. Em 2017, deixou o PSDB depois de 25 anos filiada ao partido
Karime Xavier/Folhapress Elena Landau, 61 Economista e advogada, é presidente do Centro Acadêmico do Livres, movimento que defende o liberalism­o na economia e nos costumes criado em 2015. O grupo chegou a ser parte do PSL, mas deixou o partido após a filiação de Jair Bolsonaro. Foi diretora de desestatiz­ação do BNDES de 1994 a 1996. Em 2017, deixou o PSDB depois de 25 anos filiada ao partido

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