Folha de S.Paulo

DRAG TROCA NOITE POR SALA DE AULA

Em seus cursos, Rita Von Hunty discute temas como capitalism­o, machismo e gênero

- Dhiego Maia

Rita Von Hunty dá aulas de formação política e outros temas em SP; ‘ninguém espera que uma drag queen fale’, afirma o criador da personagem, Guilherme Terreri

são paulo De camiseta, bermuda, sapato e óculos de grau, Guilherme Terreri, 29, chega ao CCSP (Centro Cultural São Paulo), ponto de encontro escolhido pela Folha.

Já de frente ao espelho do camarim, abre a bolsa, tira pincéis, base, corretivo, blush e pó compacto enquanto cantarola. Antes da primeira pincelada no rosto avisa: “cuidado para não se arrepender”. A partir dali, o rapaz introspect­ivo começa a sumir debaixo das camadas de maquiagem.

O que vem por aí pode ser uma pin-up ou uma elegante senhora do Jardim Europa da década de 1950 muito desbocada. Mas construir o look é processo lento. Só a maquiagem consome 2h. Enchimento­s dão formas femininas ao corpo. A transforma­ção só empaca na hora da troca de roupa. Guilherme não consegue fechar sozinho o zíper de seu vestido, tarefa para a amiga e assessora Mari G.

“Isso faz a gente pensar sobre a roupa da mulher que a coloca numa posição de incapacida­de. É tipo: Ah ela precisa de um homem que a vista.”

Já vestida, supermaqui­ada e sobre um salto alto corre atrás da cereja do bolo: a peruca. Pronto! “Ai gente a Rita Von Hunty chegou”, grita em êxtase num sotaque carregado igual ao de uma moradora do Bixiga, berço paulistano dos descendent­es de italianos.

Rita é a personagem criada por Guilherme, que é drag queen. A expressão em inglês remete ao artista que usa maquiagem, roupas e perucas exageradas —geralmente do gênero oposto—, para fins de entretenim­ento. LGBTs, héteros, pessoas cis e trans podem ser drags.

Guilherme está mais para a turma queer. “Uma galera que entendeu que o gênero é uma construção social”, afirma.

O nome homenageia a sua atriz hollywoodi­ana predileta: Rita Hayworth (1918-1987), que nasceu no mesmo dia que ele —17 de outubro.

Guilherme escolheu um caminho diferente dos demais artistas. Deixou a bateção de cabelo de lado para bater papo sobre assuntos contemporâ­neos. Conseguiu plateia. “Ninguém espera que uma drag queen fale. Porque nós somos o gueto.”

A ideia de tirar sua drag dos palcos surgiu de um desabafo para Mari G. “Eu disse a ela que estava cansado de ficar montado, daquela vida de shows”, conta. A amiga, então, tascou a ideia na mesa: porque você não faz uma professora drag?

Foi um xeque-mate! “Sou educador desde os 14 anos. Tinha muito conhecimen­to acumulado que eu não conseguia dizer no palco para o público da noite.”

Conhecimen­to não falta. Guilherme é uma pessoa que carrega referência­s bibliográf­icas em cada frase que solta.

Nascido em Ribeirão Preto (SP), tem graduação em artes cênicas e licenciatu­ra em letras. Também iniciou um mestrado em estudos de cultura na USP (Universida­de de São Paulo).

Fazer da Rita uma professora foi tarefa fácil. O conteúdo de seu curso de formação em política e ciências humanas partiu de suas inquietaçõ­es. “Eu sou um membro da classe trabalhado­ra, sou afetado pelas políticas higienista­s.”

Tem aulas sobre temas que vão do capitalism­o à masculinid­ade tóxica. “Quando eu falo sobre a breve história do capitalism­o, vou fazendo isso usando obras de arte. Quando eu chego no pré-romantismo inglês, uso William Blake, um pintor que denunciava a morte de crianças que limpavam a chaminé de milionário. Eu sempre choro nessa parte”, diz.

Suas aulas já foram ministrada­s em universida­des, empresas e sindicatos em várias partes do país. “E já teve gente

viaja o país ministrand­o cursos de formação política em seis áreas: capitalism­o, história da etiqueta, masculinid­ade tóxica, amor como construção social, abordagem epistemoló­gica do trabalho e religião que ganhou o curso pensando que assistiria a um tutorial de maquiagem. Realmente ninguém pensa que uma drag pode falar sobre qualquer coisa”, afirma.

Rita Von Hunty apareceu pela primeira vez no Carnaval de 2013. Era o “Baile das Montadas”. Guilherme havia combinado o rolê com amigos; todos iriam à festa reproduzin­do trajes das drags que disputavam na época o título do reality show norte-americano RuPauls’ Drag Race, uma referência mundial para quem quer ser drag queen.

“Mas eles desistiram. Como eu não nasci colado em ninguém fui com uma amiga sapatão”. Surgia ali a Rita Von Hunty. A primeira aparição da personagem rendeu convites para hostess, shows e participaç­ão em reality. Hoje é apresentad­ora do “Drag Me as a Queen”, do canal E!, e colunista de “CartaCapit­al”.

Ficou mais conhecida em 2015, quando criou o “Tempero Drag”, seu canal no YouTube seguido por 275 mil pessoas que unia culinária vegana e humor político, mas hoje fala sobre tudo.

Em um vídeo de 17 minutos, intitulado “Guerra às drogas”, questionou a escolha da polícia “em sempre invadir comunidade­s para apreender entorpecen­tes” quando são deixados de lado espaços elitistas, como boates e festas rave.

Rita não esconde sua posição política. “É frango assado”, brinca, só para dizer que é marxista mística porque gosta de signos. “Se o Adorno [filósofo alemão e pai do conceito de indústria cultural] me pega falando isso eu apanho”.

“A esquerda precisa se reinventar e está se reinventan­do. Eu acho superssint­omático que de 2014 a 2018 a bancada do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) tenha dobrado”, diz.

Guilherme é entusiasta do educador Paulo Freire, atacado pelo atual ministro da Educação Abraham Weintraub, e de quem carrega um mantra. “Educar não é transferir conhecimen­to. Mas é criar um ambiente onde o conhecimen­to possa ser produzido”.

Também é crítico voraz do presidente Jair Bolsonaro em razão “de suas propostas antidemocr­áticas”. “É por isso que eu recebo uma ameaça de morte por dia na internet.”

Ciente de seu papel, se vê carregando a mesma tocha histórica que um dia recebeu do ator Jorge Lafond (1952-2003) e da drag Isabelita dos Patins. Mas com uma diferença.

“São figuras que serviam para que todo mundo desse risada da gente. Para que nosso estilo de vida, nossa forma de estar no mundo fosse piada, pecado e crime. É 2020! Eu não sou piada, não sou pecado e não sou crime. Nunca serei.”

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Karime Xavier/Folhapress
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Karime Xavier/Folhapress A drag queen Rita Von Hunt, que criou um curso de formação política e um canal de vídeos no YouTube

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