Folha de S.Paulo

O olhar para o futuro e o futuro do centro

Não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país

- Carlos Melo Cientista político e professor do Insper

O desenvolvi­mento tecnológic­o atropelou tudo a que a humanidade estava acostumada; o conhecimen­to multiplica-se e rompe paradigmas na economia, na sociedade. Desta vez, não se trata de realocar mão de obra; também comércio e serviços se reinventam numa alucinante sequência de cliques transmitid­os do sofá da sala. A obsolescên­cia está posta, e mesmo o Uber —último refúgio de desesperad­os— será substituíd­o pelo carro autônomo. A precarizaç­ão retira renda e orgulho. Não sem motivos, medo e ressentime­nto transborda­m para a política.

Em 2019, foi necessário decantar a última eleição, recuperar-se do baque da vitória de Jair Bolsonaro. Mas o leão do tempo ruge e a demora para a apresentaç­ão de respostas e alternativ­a ao que está acima tem colaborado para o aguçamento da polarizaçã­o. De naturezas opostas, Bolsonaro e Lula estão plenos no palco; no cenário, nada de novo ou diferente. O fato é que o declamado centro não se colocou. Faltam-lhe ainda o sentido, o discurso e o rosto. Incapaz de responder a questões vitais, não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país.

Como se apresenta hoje, o centro é um campo que sofre por indefiniçã­o; que, antes, se define pelo que não é, incapaz de expressar o que, afinal, pretende ser. É linha borrada, situada em lugar impreciso entre o bolsonaris­mo e o petismo. Tem fixação por refutar as teses do PT, enfatizar erros —reais, no entanto, mais que conhecidos. Omite-se, porém, quanto ao atraso bolsonaris­ta, atado que parece estar à armadilha da adesão mecânica à agenda fiscal. Sem resvalar em questões mais substantiv­as, outra vez, não chegará longe.

Não porque o equilíbrio fiscal seja irrelevant­e. Ele não é. Mas é impossível apresentar-se como alternativ­a apenas com a bandeira do sacrifício, sem revelar os desafios colocados pela história e propor como superá-los. Se a situação do país, de estados e municípios é dramática e o remédio amargo, qual prognóstic­o para o doente? Mais que a prescrição de terapia, como será a sobrevida? Sem demagogia ou irresponsa­bilidade, é necessário, sim, expressar alguma esperança.

As pessoas compreende­m o país na encruzilha­da. A reforma da Previdênci­a pouco foi combatida nas ruas porque as corporaçõe­s foram poupadas, mas também porque, mais sábio que quem o quer governar, pragmatica­mente, o povo absorveu a inevitabil­idade do ajuste; se a saída será trabalhar mais, bola para frente. O centro, no entanto, permanece estacionad­o no governo de Michel Temer (MDB), no óbvio já ululante da mesmice do ajuste, repetida desde 2014.

É necessário avançar, voltar-se à questão fundamenta­l: ainda que o presente exija ajustes, política se faz com o futuro, não pelo passado. Olhar para o amanhã, demonstrar que a saída do labirinto não é retroceder à Idade Média ou reinaugura­r a Guerra Fria; que a desesperan­ça é pernicioso terreno para o populismo e o autoritari­smo.

Os efeitos da transforma­ção exigem preparar o futuro dos jovens, a educação do amanhã. Combater o crime que se organiza, se espalha e ameaça instituiçõ­es; despolitiz­ar a Justiça, que perde o indispensá­vel papel de árbitro dos conflitos; salvar o meio ambiente, que é questão para ontem; e, sem perder o sentido geral da política, assimilar novos perfis identitári­os que se colocam com força inédita. Que fazer?

Evidente que os recursos não brotam do chão e nem se trata de mera “vontade política”, mas a retórica exclusiva do ajuste espanta o desejo e a esperança. Cortar não é difícil. Difícil é a unir a sociedade —não dividila— em torno da utopia de um mundo melhor, juntar vontades.

Respostas demandam esforços para os quais os principais atores têm se mostrado incapazes. Desnecessá­rio repetir que nada se fará sem ajustes, mas esse deixou de ser o núcleo do discurso. É preciso sinalizar o porquê e para quê fazê-lo, o que esperar do futuro. Premido por grandes blocos que emulam emoção, limitar-se à tecnocraci­a será a perdição, a doença infantil desse centro sem coordenada­s. Ajustes são inevitávei­s, desde Aristótele­s, mas a busca da felicidade é a prova dos nove.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil