Folha de S.Paulo

Dos campeões aos pastores

Campeãs nacionais eram o paraíso em comparação ao que vem pela frente

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon, Jaime Spitzcovs

No ano de 2010, aparato público-privado erguido na ditadura, fortalecid­o por Collor e FHC nos anos 1990 e energizado por Lula nos anos 2000 se preparava para conquistar a África. A Vale constituía uma rede de entreposto­s que iam do norte do Brasil às docas de Xangai passando pelas minas de bauxita e carvão da Guiné e de Moçambique.

A Odebrecht reconstruí­a de cabo a rabo Angola, já candidata a se tornar a maior potência petrolífer­a africana. A Petrobras via no Golfo da Guiné a extensão natural do préSal brasileiro no Atlântico Sul.

No auge da política de campeões nacionais, as linhas entre o público e o privado não existiam mais. Todas contavam com o mais irrestrito apoio do poder do Estado.

Em 2010 todos acreditava­m que a próxima década seria o começo de uma nova época do capitalism­o de Estado brasileiro. Ela acabou sendo marcada pelo término inesperado do ideal do Brasil Grande dos anos 1970.

Um ideal manchado pela colusão entre o público e privado, escândalos de corrupção e a contradiçã­o irreconcil­iável do discurso humanista e do método predatório. Não surpreende, portanto, que os últimos anos tenham sido dedicados a encontrar culpados e demonizar o passado.

Porém seria convenient­e lembrar que as patologias do capitalism­o de Estado brasileiro são, infelizmen­te, comuns a outras potências. Tome-se, por exemplo, o caso da campeã nacional francesa Elf.

No final dos anos 1990, a gigante petrolífer­a esteve no centro do maior escândalo de corrupção da Europa desde a

Segunda Guerra Mundial. Envolveu políticos de todos os bordos, uma juíza que virou candidata fracassada a presidente, uma teia de cleptocrat­as tropicais, e até o filho de François Mitterrand, JeanChrist­ophe, passou a ser conhecido por papamadit (papai me disse) pela sua propensão a falar em nome do pai nas negociatas.

Depois da farra, a República francesa passou um batom e seguiu o baile como se nada fosse. Rebatizada e reestrutur­ada, a Elf, hoje Total, virou a página e expandiu seus negócios na África e principalm­ente em Angola e Moçambique, onde o Brasil alimentava grandes ambições.

Como sabemos os novos mandatário­s brasileiro­s preferiram agradar uma parte da opinião pública enfurecida e abandonar as campeãs nacionais, deficiente­s, mas fundamenta­is para o desenvolvi­mento internacio­nal do país.

O problema é que na política como nos negócios, o vazio não existe. Aproveitan­do a desarticul­ação do Itamaraty, os movimentos evangélico­s ocuparam os lugares dos executivos das grandes empresas na cabine de pilotagem da política africana brasileira

Na próxima década, transitare­mos do capitalism­o oligárquic­o de Estado ao capitalism­o missionári­o de Estado, trocando o paradigma da China do século 21 pelo do Portugal novecentis­ta que conferia à Igreja Católica poderes imperiais para cumprir a sua missão colonizado­ra na África.

A vida com as campeãs nacionais era um inferno. Mas ao lado do que vem pela frente, era o paraíso.

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