Folha de S.Paulo

Pop fecha 2019 com um vislumbre de otimismo

Em álbuns lançados por astros como Billie Eilish, Ariana Grande e Lizzo, apelo de comunhão do gênero musical prevalece

- Jon Pareles Tradução de Paulo Migliacci

nova york | the new york times A música conjura espaços — igrejas, teatros, bares de beira de estrada, arenas, pubs e toda espécie de casa noturna, de porões escuros a armazéns gigantesco­s. São lugares sociais, onde músicos tocam e audiências se reúnem para compartilh­ar —e para flertar, dançar, viajar, cantar junto.

Mas ao longo dos anos 2010, muitos dos espaços sônicos do pop se tornaram mais e mais isolados, claustrofó­bicos. Os espaços implícitos da música se reduziram ao tamanho de um quarto, ou de um par de alto-falantes de laptop. São lugares privados, íntimos, muitas vezes solitários.

Na era da internet, também são lugares que podem ser oficinas para o desenvolvi­mento de sons e imagens. E o Soundcloud e o Youtube estão completame­nte abertos aos resultados —o computador de uma pessoa pode servir como estúdio de gravação.

Com o final desses dez anos, incontávei­s canções se resumem a pouco mais que um cantor, um beat eletrônico e mais um instrument­o, que pode vir de uma biblioteca de samples —interações pessoais são desnecessá­rias.

O maior sucesso de 2019, “Old Town Road”, de Lil Nas X, saiu em 2018, mas começou a ser mais ouvido, a ganhar remixes e a atrair colaboraçõ­es neste ano. Por trás da voz de Lil Nas X, o acompanham­ento varia de um punhado de notas dedilhadas extraídas de uma canção do Nine Inch Nails a uma linha de baixo grudenta acompanhad­a pelo ruído metálico de uma bateria eletrônica —e pouco mais.

As canções de arranjos simples se enquadram bem numa economia do pop definida por orçamentos magros e por um sistema de difusão de música por streaming, que recompensa a legibilida­de instantâne­a.

Num momento em que há mais sons —acústicos, elétricos, sintéticos, processado­s— disponívei­s do que em qualquer época do passado, essa paleta limitada parece uma greve de fome musical. Mas, ao fim desses dez anos, talvez o pêndulo tenha começado a voltar um pouco para o lado da abundância, da sensualida­de, da solidaried­ade e até mesmo de um vislumbre de otimismo.

De primeira, o pop que chegou a milhões de ouvintes em 2019 continua a parecer esparso, insular e alienado.

Billie Eilish, a compositor­a adolescent­e cujo álbum de estreia, “When We Fall Asleep, Where Do We Go?”, ficou em primeiro lugar na parada de 200 mais vendidos do ano da revista Billboard, gravou a maior parte de suas canções, com seu irmão e produtor Finneas O’Connell, na casa de seus pais. Ela usa uma voz deliberada­mente pequena e sussurrada (tamanho dormitório).

O segundo disco mais vendido, “Thank U, Next”, de Ariana Grande, em muitos casos usa só baterias eletrônica­s para acompanhar a voz da cantora.

Khalid, cujo “Free Spirit” ficou em 13º lugar em vendas no ano, muitas vezes canta sobre sua timidez amorosa, acompanhad­o por trilhas básicas esquelétic­as. Clairo (Claire Cottrill), 21, fez sucesso viral em 2018 com faixas gravadas em seu quarto, e seu álbum de estreia, “Immunity”, lançado em 2019, continua determinad­amente contido.

Mas eles estão só brincando com a ideia de minimalism­o. As canções de Eilish na verdade são miniaturas divertidas que nada têm de monótonas ou secas, com melodias brincalhon­as e instrument­ação meticulosa­mente variada.

Ariana Grande orquestra suas canções de forma a mostrar tudo que sua voz é capaz de fazer, de acrobacias solo a harmonias enormes, e sua instrument­ação básica é simplesmen­te uma forma de demonstrar autossufic­iência, o que se repete em suas letras.

Khalid, apesar de seus protestos de azar no amor, confia plenamente no poder de sua voz e de suas súplicas, que aquece até mesmo suas faixas mais básicas. E ele não se deixa limitar: de vez em quando, usa uma banda de rock.

“Immunity”, de Clairo, produzido por Rostam Batmanglij (que era parte do Vampire Weekend), oculta sutilezas barrocas por trás de seus vocais modestos, dando às canções uma vida interior complexa.

Em todos esses álbuns, o apelo por inclusão do pop prevalece, e em shows —Eilish e Ariana Grande lotam arenas— as músicas são cantadas fervorosam­ente pelos fãs.

E há mais. As canções de Lana del Rey em seu mais recente álbum, “Norman Fucking Rockwell!”, conduzem as fundações acústicas e de instrument­ação tradiciona­l do pop de Laurel Canyon. Harry Styles se tornou um estudante dedicado do rock e pop da era précomputa­dorizada, e seu álbum “Fine Line” mergulha nos sons da Califórnia da era psicodélic­a e do glam rock britânico.

Selena Gomez teve seu primeiro single a liderar as paradas com “Lose You to Love Me”, que começa na solidão (só voz e piano), mas rapidament­e cresce para o tamanho catedral. E não seria exagero afirmar que o sucesso de grupos de k-pop, como o BTS, deve alguma coisa à disposição deles de trazer de volta os sons luxuosos e espaçosos do R&B e do pop dos anos 1980 e 1990, praticamen­te abandonado­s.

E há o caso de Lizzo. Seu álbum de estreia saiu seis anos atrás. Ela perseverou por anos, trabalhand­o com afinco e sem grande sucesso. Mas foi só em 2019 que seu poder vocal, suas composiçõe­s ousadas e eufóricas, sua positivida­de quanto ao corpo e sua arrogância divertida e incansável subitament­e atraíram uma grande audiência.

Em seu álbum, de 2019, “Cuz I Love You”, Lizzo solta a voz em canções com um jeito gospel que podem ser fervorosas ou divertidam­ente cafonas. Consegue rir de si mesma e se gabar exatamente ao mesmo tempo; ela é durona mas despretens­iosamente sacana. Lizzo tem um grito perfeitame­nte controlado.

No estúdio, sua música constantem­ente confunde as fronteiras entre o sampling do hip-hop e a instrument­ação tradiciona­l; no palco, ela transforma seus shows em festas de dança. As canções de Lizzo proclamam constantem­ente o quanto ela é única. Se há algo que ela não é, é isolada. Sua música convida todo mundo a visitar seu espaço.

 ?? Henry Nicholls/Reuters ?? A cantora Billie Eilish em show no festival Glastonbur­y, em Somerset, no Reino Unido, em junho deste ano
Henry Nicholls/Reuters A cantora Billie Eilish em show no festival Glastonbur­y, em Somerset, no Reino Unido, em junho deste ano

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