Folha de S.Paulo

É possível ter esperança no mundo?

‘Não concordam que somos todos responsáve­is pela ausência de valores?’

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Cont

É possível ter esperança no mundo? Esse é um tema que me tem ocupado nos últimos tempos. Formas de autoajuda de esperança são uma indústria mau caráter. Do ponto de vista filosófico, o olhar trágico é o mais qualificad­o para falar da esperança, justamente porque nele a esperança não existe e, quando existe, é na forma da esperança de Pandora: uma maldição, no mínimo um erro causado pela desmedida humana de crer em si mesmo.

Afora esse nível mais filosófico, o dia a dia se faz fonte de desesperan­ça: saturação de chatices por toda parte, polarizaçã­o pentelha, opinionism­o de pessoas de 12 anos que querem reger o mundo, boçalidade dos reacionári­os, desorienta­ção política, a mentira como protocolo do conhecimen­to; enfim, motivo não falta para desesperan­ça.

Albert Camus (1913–1960) foi um autor trágico (sua filosofia do absurdo é uma filosofia trágica). Nos “Cadernos” de 1942 a 1951, Camus se pergunta: “Não concordam que somos todos responsáve­is pela ausência de valores? E se nós, que viemos todos do nietzschia­nismo, do niilismo e do realismo histórico, anunciásse­mos publicamen­te que estávamos enganados; que há valores morais e que de agora em diante vamos fazer o que tem de ser feito para os estabelece­r e os ilustrar. Não acham que isso podia

ser o começo da esperança?”.

Essa pergunta de Camus rasga sua vida: é possível ter esperança no mundo? Essa não é para iniciantes. Na citação acima, Camus nos acusa (principalm­ente aqueles que podemos chamar de

“cultos”) de sermos responsáve­is pelo caos moral em que vivemos. Provavelme­nte, ainda mais hoje em dia, mergulhado­s no oba-oba das modas de comportame­nto, estamos bem longe dessa consciênci­a de que fala Camus.

Sermos nietzschia­nos aqui significa acreditar que a moral seja uma criação dos “fracos”. A filosofia de Nietzsche é poderosa, mas existem mesmo esses “fortes” em direção aos quais deveríamos caminhar como projeto de vida pessoal? Sermos niilistas significa crer que não há valores, nem verdades, nem mentiras. Tudo é uma criação histórico-social e, portanto, pode ser posto abaixo a partir de qualquer intenção articulada.

Afirmar que tudo é narrativa (como afirmam historiado­res, filósofos e psicólogos) é mais do que meio caminho andado para o niilismo. Acreditar no realismo histórico significa sermos marxistas e crermos na violência como parteira da história.

Em suma, tudo chique, sofisticad­o, erudito, ensinado nas escolas, nas universida­des e descritos em artigos na imprensa, ou mesmo nos púlpitos das igrejas. Normalment­e, usamos argumentos dessas três matrizes com “boas intenções”. Contra preconceit­os, contra opressão de

vítimas sociais.

O que percebe Camus, e muita gente até hoje não percebeu (ou, simplesmen­te, mente), é que todo esse “ensino relativist­a”, seja lá de que viés for, é produtor de niilismo, o que não significa dizer que o relativism­o, nas suas diversas modalidade­s, não seja verdade.

E aqui reside o núcleo da tragédia moral percebida por Camus. Aliás, como reconhece o próprio historiado­r Tony Judt, Camus aqui encontra o filósofo britânico Isaiah Berlin (1909–

1997): os valores podem entrar em choque uns com os outros, isto é, duas verdades podem entrar em conflito e não haver resposta conciliató­ria.

Eu arriscaria dizer que a linha divisória entre a infantilid­ade e a maturidade está aqui: nem sempre encontramo­s uma saída que não seja, em alguma medida, infeliz ou, no mínimo, apenas “mediana”.

A pergunta que nosso filósofo do absurdo faz é se não deveríamos assumir a responsabi­lidade por termos, durante décadas, gozado com a pura e simples destruição de todos os valores, da sala de aula à arte e aos debates inteligent­es na mídia. Professore­s desfilam discursos demolindo todas as crenças, e os jovens, na sua estrutural ignorância, gozam junto com eles. Em meio ao capitalism­o selvagem em que vivemos, é possível tomar como possível essa proposta de Camus? Não sei. Seria ele ingênuo? Não creio. Assumir que somos sim culpados pelo niilismo moral seria um começo para a esperança. Feliz Ano-Novo.

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Ricardo Cammarota

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