‘Miseráveis’ mostra lado menos próspero de Paris
Longa que dividiu prêmio em Cannes com ‘Bacurau’ aborda tensões raciais e sociais em área violenta da capital francesa
No último Festival de Cannes, o brasileiro “Bacurau” dividiu o prêmio do júri com o longa francês “Os Miseráveis”. Mas se a honraria não soou forte o bastante para que nossa comissão indicasse o filme pernambucano como representante do Brasil no Oscar, aos franceses a láurea pareceu uma boa credencial.
E se deram bem. O longa de Ladj Ly, que estreia agora no país, é um dos cinco indicados à estatueta de melhor filme internacional —já o Brasil, ficou de fora na categoria.
“Estou muito otimista”, diz Alexis Manenti, corroteirista e ator do longa, pouco antes de dar uma gargalhada. O riso talvez seja por saber que o filme tem poucas chances diante do sul-coreano “Parasita” —que já havia superado “Os Miseráveis” no mesmo Festival de Cannes, levando a Palma de Ouro. “É preciso pensar positivo. Creio no poder universal do filme”, diz Manenti.
O francês esteve no Brasil em dezembro, no Festival do Rio, junto do colega de elenco Almamy Kanouté. O longa se passa em Montfermeil, na periferia de Paris, mostrando um policial forasteiro que passa a atuar no lugar. Ali, precisa lidar com tensões sociais diversas, ligadas sobretudo ao racismo e a uma grande desigualdade social. E também a uma polícia despreparada, que muitas vezes mais acirra do que apazigua conflitos.
Ou seja, é uma França bem diferente do país próspero e intelectualizado que o cinema tornou um clichê. “Não há tanto uma vontade de quebrar esse estereótipo, mas de falar de uma realidade que nem sempre é vista no cinema. A cada dez anos surge um filme sobre o tema, mas em geral escrito por gente de fora daquela realidade”, observa Manenti.
Não é o caso do diretor Ladj Ly, que nasceu e cresceu em Montfermeil. “O filme é autêntico porque vem de um conhecimento da realidade, de quem já andou por ali”, diz Manenti. O roteirista, embora não seja de origem suburbana, diz conhecer bem a região. “Por mais que você estude um lugar, sem vivenciar de perto, há sempre detalhes que não serão apreendidos.”
“Os Miseráveis” se passa na mesma periferia onde ocorre parte da ação do livro homônimo de Victor Hugo, mas não é uma adaptação do romance. Segundo Manenti, a ligação entre as obras é que falam sobre desvalidos franceses.
“A França precisava desse filme para lembrar que a obra de Hugo já apontava o dedo para as consequências de uma situação de miséria e a importância de que as pessoas se organizem para não continuar a se submeter a isso”, complementa Kanouté.
Os atores dizem não saber como os brasileiros vão reagir ao filme. “Eu me pergunto se não vão achar meio risível, porque o Brasil tem os mesmos problemas, mas em escala muito maior. Pelo que ouvimos na França, essas questões são ainda mais graves aqui”, diz Manenti.
Kanouté é mais específico. “Na França, as mortes por policiais acontecem porque os métodos de interpelação são mal dominados. No Brasil de hoje, muitas vezes quando vão à favela é para matar.”
Em seguida, Kanouté faz uma pausa e pergunta: “Não vão nos proibir no Brasil, vão?”. E Manenti sugere ao repórter: “Se der para publicar só após voltarmos [à França], seria bom”. O tom, claro, era de brincadeira, mas com um quê de preocupação genuína de quem parece bem informado sobre o Brasil de hoje.
Inácio Araujo
Quando o realismo dá certo, o que acontece é o que vemos em “Os Miseráveis”: um filme arrasador. Em vários sentidos, todos difíceis de explanar em palavras, pois é das imagens que vêm a força e a complexidade.
Vamos começar pelas palavras finais, as de Victor Hugo, o autor do primeiro “Os Miseráveis”, estampadas ao final do filme: “Não há ervas daninhas, nem homens maus. Há apenas os que não sabem cultivá-los”.
Poderia também ser uma bela introdução. O que temos no longa é um fragmento na vida em Montfermeil. Desde as primeiras cenas, Ladj Ly conduz o espectador de maneira documental à vida extremamente tensa que ali se vive.
Um menino rouba galinhas, os muçulmanos se reúnem, outros garotos brincam numa espécie de pista de skate sem skate, os policiais fazem a sua ronda de carro, sem delicadeza, o dito prefeito do local comanda a bagunça da feira e busca tirar suas vantagens, outro grupo de muçulmanos se fecha.
A situação não é pouco explosiva. Basta um grupo de circenses (que os outros chamam de ciganos) aparecer com a queixa do sumiço de um leão bebê. Chegam em bando, com a sensibilidade na ponta dos porretes que carregam, ameaçam todo mundo etc.
A diplomacia é uma arte difícil de praticar por ali. Todos sabem que quem fez a molecagem de sumir com o leãozinho foi um dos garotos do lugar. O que há de nervoso na situação se reflete na câmera ágil, que acompanha os três tiras que lidam com o problema.
Para voltar à citação de Hugo, não se trata de distinguir os bons dos maus, mas de observar como comportamentos se estabelecem e se desenvolvem. E aqueles de quem primeiro se espera que sejam vistos como os vilões (os policiais), em dado momento parecem tão vítimas quanto a população.
Como Victor Hugo paira sobre “Os Miseráveis”, a questão que se impõe é: quem cultivará mal os homens e as ervas?
Não basta culpar a polícia pela violência, nem suas vítimas pela contraviolência, nem os meninos por suas molecagens. Algo paira sobre tudo isso, quer se chame neoliberalismo, o presidente, os políticos, o sistema, o que for. Algo que faz do mundo presente uma entidade doentia, onde as perspectivas são mínimas para a maior parte da população. Onde se sobrevive, não se vive.
É mais ou menos isso que se pode ver numa enorme variedade de filmes que passou por Cannes neste ano: “Parasita”, “Bacurau”, “Atlantique”. É a questão mais presente não só no cinema, mas na sociedade em geral, o que determina a derrota da razão e a ascensão da irracionalidade, em vários lugares do mundo: uma espécie de fúria incontrolável.
“Os Miseráveis” mostra esse estado das coisas, não o julga, nem oferece uma resposta. No entanto, mostrar, com tal lucidez, o que acontece, já é o princípio de uma decifração.
Apenas como registro final: os miseráveis da França vivem uma vida de reis perto dos miseráveis do Brasil. Isso, claro, é uma outra história. Mas não é.