Folha de S.Paulo

Você já ouviu falar em carga mental?

Se um dia você vir minha filha sem sapatos, saiba que eu apenas obedeci e relaxei

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Eu tenho um marido sempre presente e prestativo. Todos o elogiam. Eu sempre o elogio. Por que, então, fui parar no médico tantas vezes o ano passado, sentindo a cabeça e o corpo pifarem? Ao falar para o clínico geral que eu tinha vontade de me deitar no chão da feira de orgânicos, ele me pediu marcadores tumorais e colonoscop­ia. Ao falar para o psiquiatra que eu tinha vontade de me internar num hospital só para ficar um dia inteiro sendo cuidada, ele me pediu que aumentasse a pregabalin­a (para dores) e a venlafaxin­a (para depressão). Por sorte, a minha obstetra (mulher!) me falou sobre CARGA MENTAL e me mostrou o quadrinho da ilustrador­a francesa Emma Clit que viralizou um tempo atrás. Na história, um rapaz bem-intenciona­do tenta consolar a sua amoreca sobrecarre­gada com o clássico papinho queridão: “Mas era só você ter me pedido!”. Bom, ter que avisar alguém do que precisa ser feito (e, portanto, pensar no problema antes e sozinho) é, resumidame­nte, a tal carga mental.

Se eu trabalho tanto quanto meu marido ou mais, por que são minhas as funções de fazer a lista do supermerca­do, comprar as roupas e marcar o médico da nossa filha, antecipar o fim do azeite, escolher a melhor dentista e instruir a babá a esperar as fraldas acabarem para ir à farmácia? Multipliqu­e isso por mil coisas, mil vezes ao dia.

Por que quando eu me deito no sofá com meu parceiro para ver um filme, ele de fato CURTE o momento e eu fico pensando em todos os perrengues insuportáv­eis dessa complicada (e sem fins lucrativos) empresa chamada “lar doce lar”? “Ah, você precisa aprender a se divertir!” Aos 40 anos, quem diria, eu achando que estava mandando superbem como mãe, esposa e profission­al, fazendo pós e academia, mas ainda exigem de mim um doutorado em “como ser mais sussa, tranquila e de boa”. Se um dia você encontrar minha filha sem sapatos, com um vestidinho dois números menor que o seu tamanho e com comida nos dentes, lembre que eu apenas obedeci e RELAXEI.

As mulheres tomam mais ansiolític­os e antidepres­sivos que os homens. O Brasil é o maior consumidor de calmantes do mundo. E o que nós mulheres podemos fazer para que a nossa carga mental deixe de ser invisível? Uma campanha contra os homens? Contra as famílias que os criaram assim? Transforma­r o adjetivo “prestativo” em um novo xingamento? Não! Meu marido é legal e talvez o seu também seja. Eles só precisam (de novo!) de uma forcinha. Então aqui vai uma dica: imprima e cole a lista abaixo na geladeira. Que fique claro que estas são as frases que não suportamos mais ouvir:

Mas você não falou que era pra eu fazer! Mulher consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo, homem não. Você faz melhor! A criança prefere que a mãe faça isso. Eu ia fazer, você que não sabe esperar. Faz a lista e me manda. Você só gosta das coisas do seu jeito! Você é neurótica por limpeza e arrumação! Onde você tá vendo bagunça? Mas é você que não sabe delegar. Mas eu já lavei a louça! Eu não vi que tinha acabado. Você é muito controlado­ra! Faz a minha mala também? Já decidiu a viagem? “A gente” pegou o passaporte das crianças? Não sei onde fica o termômetro. Você falou com o pediatra? Acabou o queijo. Precisa avisar a empregada que acabou o queijo. Você sabe onde está o queijo? O que vamos jantar hoje? Relaxa! Eu sou assim mesmo e não vou mudar.

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