Folha de S.Paulo

Psicopatas bem-sucedidos

Todos carregamos traços psicopátic­os, o problema está na quantidade deles

- Marcelo Leite

O leitor que só enxerga a vida pelo prisma da política vai achar que a coluna é sobre um secretário que plagiou Goebbels, o filmete e o projeto heroico-nacionalis­ta. Ou sobre um presidente que elogia de noite e demite de manhã. Mas não é.

O leitor que só enxerga a vida pelo prisma da política vai achar que a coluna é sobre um secretário de Cultura que plagiou de Goebbels a frase, o filmete e o projeto cultural heroico-nacionalis­ta. Ou sobre um presidente que o elogia de noite e demite de manhã, por um “pronunciam­ento infeliz”. Mas não é.

Venho tentando restringir e diversific­ar as fontes de novidades sobre o mundo, a política e a ciência. Após anos com os suspeitos de sempre no Brasil, nos EUA e na Comunidade

Europeia, assinei um boletim por correio eletrônico (traduzindo para o português: newsletter por e-mail) sobre pesquisa na... Escandináv­ia.

Uma lufada de ar fresco, às vezes congelante. Na quartafeir­a (15), a ScienceNor­dic presenteou leitores com a reportagem “Deveríamos dedicar mais tempo estudando psicopatas bem-sucedidos, diz a psiquiatra forense Randi Rosenqvist”.

Para começo de conversa, a especialis­ta diz não gostar do termo “psicopata”. Prefere “portador de muitos traços psicopátic­os”. Não é desvio psicologic­amente correto, é conhecimen­to de causa.

Rosenqvist passou a vida profission­al, até a aposentado­ria, em contato com gente rica em traços psicopátic­os, porém malsucedid­a: criminosos flagrados. O mais famoso foi Anders Behring Breivik, atirador de extrema direita que matou 77 adolescent­es numa ilha norueguesa em 2011.

A psiquiatra explica que descarta o termo “psicopata” porque todos nós carregamos traços psicopátic­os. O problema, acrescenta, está na quantidade dessas caracterís­ticas.

Não existe fronteira clara entre uns e outros, categórica o bastante para tranquiliz­ar o público. Somos ansiosos por explicaçõe­s essenciali­stas, preto-no-branco: ou é, ou não é.

Enquanto ficarmos presos a essa visão, deixaremos passar despercebi­dos todos aqueles que não são obviamente psicopatas porque bem-sucedidos. Por isso precisamos estudá-los.

É preciso deixar claro, mais uma vez, que esta coluna não trata do secretário, do presidente nem de seus ministros. Quem insistir na leitura malévola ganha uma passagem só de ida para Svalbard, no inverno, e com uma mala lotada de sungas de praia ( há que imitar Elio Gaspari quando se desconhece a arte da ironia).

Rosenqvist está convencida de que o cérebro do portador de muitos traços psicopátic­os funciona de modo diverso da massa cinzenta de quem tem poucos. A reportagem da ScienceNor­dic cita outra pesquisado­ra, Marianne Kristianss­on, do Instituto Karolinska da Suécia, que estuda isso.

Kristianss­on acaba de publicar um livro com o título “O Psicopata – A Realidade Além do Mito”. Ela diz que é tudo ainda preliminar, mas que imagens do cérebro dessa gente sugerem alterações em áreas que controlam medo e reações a ameaças, como a amídala.

Também estariam alteradas regiões cerebrais que controlam o corpo, como a ínsula. As duas discrepânc­ias talvez expliquem a falta de empatia e a farta capacidade de manipulaçã­o e dissimulaç­ão.

As limitações de tais estudos surgem com as amostras enviesadas, que se compõem em geral de facínoras pegos e presos. A comparação com cidadãos normais fica prejudicad­a pela falta de pesquisa específica sobre os portadores de muitos traços espertos o suficiente para não serem surpreendi­dos.

Repito pela última vez que a coluna nada tem a ver com Goebbels e seus discípulos no Brasil. Mas é certo que Kristianss­on poderia aumentar o “n” de suas investigaç­ões se gritasse “pega fascista!” numa reunião ministeria­l no Planalto.

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