Folha de S.Paulo

Nada óbvio sob o Sol

- Ana Carolina Amaral

são paulo “Não sei o que esperar. Já foi ao astrólogo?”, ouvi de uma fonte, um dia desses, ao pedir uma leitura de cenário. Acabou o tempo em que habilidoso­s analistas podiam prever jogadas políticas e dizer que tal grupo forçaria um projeto ou bloquearia uma direção.

Na falta de uma dinâmica clara, vale qualquer aposta absurda. E a gente se vê obrigado a levantar bandeiras que até ontem mesmo eram obviedades pacíficas: contra o racismo, pela democracia, educação, ciência, cultura, meio ambiente, Amazônia. É tempo de defender o óbvio, justamente porque não podemos mais contar com ele.

O mundo atravessa complexas turbulênci­as, e elas abrem rachaduras para questionar tudo o que esteja estabeleci­do. O chacoalhão nas estruturas pode, no médio prazo, abrir oportunida­de para se empreender um modelo de desenvolvi­mento mais justo e sustentáve­l. O risco, entretanto, é imediato: voltarmos algumas casas no entendimen­to sobre o que seria de inconteste interesse público —justamente agora, quando já estamos à beira do precipício imposto pelas crises climática e ambiental.

Temos, afinal, uma década para cortar pela metade as emissões de gases-estufa. O desafio convida a novos modelos de negócio, como a geração distribuíd­a de energia solar — não surpreende, portanto, a resistênci­a das distribuid­oras brasileira­s de energia contra o subsídio ao setor. Mais um item na lista de obviedades a serem defendidas: a energia do Sol.

O alvoroço que reúne tudo o que há de ultrapassa­do —de garimpeiro­s a terraplani­stas— é comparável à galinha que segue andando e pulando após ter a cabeça cortada. A despeito da firmeza dos movimentos que podem convencer multidões, não há cérebro atuante.

Para evitar que o absurdo se normalize, a cena convoca toda a sociedade pensante a denunciar o óbvio: a galinha está sem cabeça, o rei está nu e a degradação ambiental já ameaça as gerações atuais —entre outras obviedades, hoje mais à sombra do que ao sol.

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