Folha de S.Paulo

Qual divulgação científica (não) queremos?

Sob ameaça, cientistas devem adotar visão crítica

- Denise Nacif Pimenta e Débora d’Ávila Reis Pesquisado­ra da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Professora da Universida­de Federal de Minas Gerais (UFMG)

Divulgar, divulgar, divulgar. Palavra que tem se repetido nas bocas de acadêmicos, jornalista­s, gestores, financiado­res e aqueles envolvidos naquilo que denominamo­s hoje de divulgação científica. Mas de qual divulgação científica estamos falando? Qual se faz necessária no contexto atual? Qual ciência queremos ou devemos divulgar?

Divulgar uma ciência tecnicista, que invisibili­za os interesses econômicos e políticos que influencia­m a sua produção? Ciência universal, que desconside­ra singularid­ades e contextos locais? Ou uma ciência cheia de maravilhas, mas também de controvérs­ias, contradiçõ­es e riscos?

Em tempos de fake news, a divulgação científica é tratada como “cura” para todos os males. Panaceia que vem nos salvar da ignorância e dos terrores da antidemocr­acia. Versão 6.0 de um iluminismo que vê na ciência e na tecnologia salvação e, quiçá, redenção. Será mesmo?

A ciência e os cientistas estão sob ameaça. Divulgamos ciência para “provar” para a sociedade, para as agências de financiame­nto e até para nós mesmos que fazemos ciência e que fazer ciência no Brasil ainda vale a pena... Então fazemos (meio sem saber direito para que serve, nem com quem queremos dialogar) vídeos, blogs, podcasts, pitches, palestras “ad nauseam”. Lotamos sites institucio­nais de resultados e trazemos a dita população para se assentar calada nos auditórios. Mas divulgar é mais do que somente desenvolve­r produtos. O momento urge por uma visão mais crítica.

O “griot” (contador de história da tradição africana) Sotigui Kouyaté nos lembra que a pior coisa do mundo é a ignorância. Ele e seu povo concordara­m que o maior ignorante “é aquele que não foi ao encontro dos outros”. Divulgar ciência é também ir ao encontro dos outros. Ir além do muro (gigantesco!) da academia. Ousar escalar esse muro criado ao longo da história por nós mesmos e navegar horizontes desconheci­dos e/ou esquecidos.

Divulgar é conversar sobre ciência sim, mas também escutar outras falas, conhecer demandas inimagináv­eis para ensinar aprendendo. Dialogar com quem tem sido designado a ficar calado. Este outro, este “público-alvo” que insiste em questionar nossas certezas.

É preciso ir além da boa vontade e investir recursos, pessoas, tempo e estrutura. Assumir o compromiss­o social, político e cultural na produção do conhecimen­to. Há riscos (ora acertamos, ora erramos). Não tem receita. Requer atuação inter, multi e transdisci­plinar.

Gabriel Perissé faz um resgate etimológic­o da palavra “divulgar” e aponta sua partícula latina “dis”, indicando variedade de direção, dispersão, e pelo verbo “vulgare”, que significa “espalhar”, “publicar”.

Ao divulgar, lançamos em todas as direções uma ideia, uma palavra. Vamos abrir espaços para as palavras ressoarem. É tempo de unirmos, acadêmicos e não acadêmicos, para compartilh­armos conhecimen­tos que nos conduzam a um mundo mais justo e com mais escuta. Mais do que incluir, sejamos (re)integrados para lutar por uma divulgação que realmente queremos.

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Claudia Liz

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