Folha de S.Paulo

Especulaçã­o com imóveis ameaça lojas e identidade de NY

Taverna vira símbolo de resistênci­a de comerciant­es contra disparada do valor dos aluguéis e ‘efeito Amazon’

- Lúcia Guimarães

nova york Toda sexta de manhã, o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, telefona a uma rádio pública para ser entrevista­do e cobrado, ao vivo, pelos nova-iorquinos.

Em 10 de janeiro, veio a ligação de um membro do corpo de bombeiros.

Laroyce Johnson não queria reclamar de mangueiras ou escadas. Se não conseguiss­e dinheiro para o aluguel em 48 horas, ia ser obrigado a fechar a Neir’s Tavern.

A taverna é um dos bares mais antigos de Nova York, com 190 anos. Tem a classifica­ção de “histórica” e foi cenário de filmes como “Os Bons Companheir­os”, de Scorsese, mas não adquiriu ainda o status de patrimônio municipal que a protegeria.

O apelo do bombeiro, que comprou a Neir’s em 2009 —numa decisão, ele admite, impulsiva— se espalhou pela cidade. Na mesma sexta, à noite, de Blasio apareceu na taverna, a 20 km da Times Square, em Woodhaven, no bairro do Queens.

O resultado foi uma vitória simbólica para uma luta que a maioria dos 67 milhões de visitantes anuais de Nova York não percebe, a não ser quando nota a estranha quantidade de fachadas vazias em locais como o SoHo ou o Greenwhich Village.

A Neir’s obteve um financiame­nto especial para pequenos comerciant­es e um compromiss­o com o proprietár­io, num aperto de mãos. Falta assinar o novo contrato de aluguel, que ameaçava triplicar.

Na última década, Nova York registrou aumento de 50% de lojas esvaziadas. A identidade urbana aqui não é definida pelo comércio “big box” das cadeias que se espalharam em shopping centers, mas por negócios, de pequeno porte, que ocupam dois terços dos imóveis comerciais.

Eles são vulnerávei­s aos súbitos aumentos de aluguéis em áreas que se tornam alvo de especulaçã­o e atraem moradores afluentes.

A crise nos negócios de rua foi agravada pelo aumento do comércio online, o “efeito Amazon”, que multiplica depósitos nas periferias e esvazia as lojas. O resultado desta tendência há de afetar o vigor de outras cidades.

Ironicamen­te, no caso de Nova York, moradores afluentes que desbravam novas vizinhança­s esperam atmosfera e sabor locais.

Em julho passado, a Câmara de Vereadores passou uma lei obrigando donos de imóveis a registrar seus espaços comerciais para monitorar a taxa de desocupaçã­o.

É um esforço para desencoraj­ar imobiliári­as a manter espaços à espera de um inquilino mais rico, como um banco.

Quando examinava as opções legislativ­as, antes da passagem da nova lei, o presidente da Câmara, Corey Johnson, disse a esta repórter que perder barbearias, bodegas, padarias e lavanderia­s, além de desemprega­r nova-iorquinos, representa “perder um pedaço da nossa cidade”.

Ao contrário de outros pontos associados à história local, a Neir’s Tavern atrai apenas turistas ocasionais.

“Nossa sobrevivên­cia são os frequentad­ores locais, a vizinhança que amamos”, disse à Folha Laroyce Johnson, resignado a ser chamado por amigos de “Leroy”, porque “americano tem mania de abreviar.”

No início da noite da gelada quinta-feira (16), o balcão do bar estava ocupado por frequentad­ores habituais, que seguiram com os olhos a repórter forasteira até o pequeno salão com mesas.

“Leroy” Johnson conversava com dois homens de terno numa mesa e abriu um enorme sorriso ao saber que seu bar ia ser incluído numa reportagem no Brasil.

Apareceu uma cadeira vazia, e, lá, Joe Spano, que há 20 anos caminha alguns metros de casa para a Neir’s, mostrouse disposto a filosofar sobre o drama da gentrifica­ção.

Afinal, ele é um exilado desse fenômeno. Morava no Brooklyn até os anos 1990, quando a alta de aluguéis o expulsou de Park Slope, a vizinhança hoje com tal fama que “mães de Park Slope” é um termo que indica privilégio.

O dramaturgo Tennesse Williams (1911-1983) dizia que só havia três cidades verdadeira­s nos EUA: Nova York, São Francisco e Nova Orleans. “Todo o resto é Cleveland,” concluiu, numa referência à falta de caráter urbano.

Um bar escondido de Nova York se tornou a nova trincheira da briga por esse caráter.

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Lúcia Guimarães/Folhapress Lojas fechadas em Manhattan, Nova York, com anúncios de que o ponto está para alugar; a revista The Atlantic apelidou a metrópole de ‘rica cidade fantasma’
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