Folha de S.Paulo

Para atletas de rendimento, esporte significa sentir dor

Visão de atividade física como sinônimo de saúde não vale para a maioria deles

- Alex Sabino

são paulo Leivinha tinha a possibilid­ade de fazer um último bom contrato na carreira em 1979. O New York Cosmos, equipe em que dois anos antes estava Pelé, queria leválo para os EUA por três temporadas. O atacante aceitou a oferta, mas não pôde concretizá-la. Em vez disso, abandonou o futebol aos 29. As dores não o deixavam continuar.

“Fui no consultóri­o do meu médico e falei que estava com muita dor no joelho. Reclamei doincômodo­eelemediss­e:‘você tem o joelho de um cara de 80 anos, não o de alguém com 40. Você usou muito as cartilagen­s e os ligamentos”, afirma Fernando Meligeni, 48, tenista profission­al de 1990 a 2003.

Edição da Revista de Psicofisio­logia afirma que não existe uma definição satisfatór­ia para o que é dor. Uma delas explica ser “uma sensação pessoal íntima do mal”. Há vários esportista­s que concordam com isso. Atividade física é saúde para amadores e sedentário­s. Para quem pratica em alto rendimento, em busca de vitórias, medalhas, glória e dinheiro, esporte significa dor.

Atacante de Portuguesa, Palmeiras, Atlético de Madri (ESP) e São Paulo nos anos 1960 e 1970, Leivinha é um dos ex-atletas que convivem com ela mesmo 40 anos após ter deixado de jogar futebol.

Ele tem prótese nos dois joelhos e nos dois quadris e por isso encontra dificuldad­e para manter o equilíbrio e andar.

“Os tratamento­s, as cirurgias e as injeções para jogar foram me limitando mais e mais. Ainda preciso fazer fisioterap­ia. Completei 70 anos em setembro [de 2019]. Parei de jogar há quatro décadas e ainda sinto muito as consequênc­ias disso”, afirma o ex-jogador, que depois da aposentado­ria se tornou comentaris­ta, mas hoje apenas assiste a partidas pela televisão.

“Os atletas passam do limite do que é saudável. Quando a dor é crônica, pode acontecer o excesso de analgésico­s. A pessoa tem uma lesão, pode ser grave, mas ela não pode demonstrar isso por medo ou fraqueza. Então exagera nos analgésico­s fortes, como corticoide­s, e não é raro ficarem dependente­s”, afirma Marcio Matsumoto, especialis­ta em dor do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

Ao lado do skatista Bob Burnquist, ele tem o plano de montar o Instituto de Pesquisa em Neurociênc­ia. A ideia é estudar o assunto e tratar ex-esportista­s profission­ais e pacientes em geral que sofrem de dores crônicas.

Matsumoto considera que a vida do atleta é tão indissociá­vel da dor que isso pode ser um problema. Uma afirmação que vai de encontro ao que pensam esportista­s de alto nível em diferentes modalidade­s.

“Meu linear [limite] de dor é bem alto. Se eu der uma topada com o dedo do pé, não sinto nada”, constata Daniele Hypólito, ginasta profission­al desde 2004, integrante da seleção brasileira e com cinco Olimpíadas no currículo.

“Vai passando o tempo e você convive com a dor. Ela faz parte da sua vida”, concorda o zagueiro Edu Dracena, recémapose­ntado com a camisa do

Palmeiras. “E olha que eu passei por quatro cirurgias no joelho! Eu sei o que é dor.”

Os atletas podem saber, mas muitas vezes não demonstram senti-la. Isso em parte por causa da maneira de pensar que adquirem durante anos no esporte. Um dos ensinament­os recorrente­s é que, se após o treino não houver dor, há algo errado. Significa que a prática não foi bem-feita.

Há também os chavões que escutam sem parar. Como “dar 100%” ou “vencer contra tudo e contra todos”. Na visão de especialis­tas, isso incentiva ao atleta se enxergar como um super-herói, alguém que não pode demonstrar fraqueza e jamais se afastar do esporte por sentir dor.

“Estamosdia­ntedaprese­nça de um sujeito que sofre e muitas vezes não se autoriza a expressar seu sofrimento por estar identifica­do à imagem de herói e inserido em um contexto onde a lesão e a dor são naturaliza­das e permitidas: é o preço que se paga se quiser ser campeão”, escreve a psicóloga Clarice Medeiros no estudo

“Lesão e dor no atleta de alto rendimento: o desafio do trabalhoda­psicologia­emesporte”.

Foi o que aconteceu com o norte-irlandês Norman Whiteside, 54. Apontado como gênio aos 16 anos, o jogador mais jovem ao entrar em campo em uma Copa do Mundo (17 anos e 41 dias, em 1982) e com a perspectiv­a de se tornar milionário, ele suportou por anos as dores quase incapacita­ntes nos joelhos e nos quadris.

“Acordar e sair da cama a cada manhã era um suplício. Em alguns dias, a dor era insuportáv­el”, relata ele.

Algo semelhante à descrição dadasobreG­arrinchape­lacantoraE­lzaSoares,quefoimulh­er do jogador, na biografia “Estrela Solitária – um brasileiro chamado Garrincha”, escrita pelo colunista da Folha Ruy Castro.

Whiteside parou aos 26 anos, em 1991, quando o médico o alertou que uma falta recebida em campo, mesmo que não fosse violenta mas que acertasse no lugar errado, poderia deixá-lo paralisado.

Ele se formou em fisioterap­ia e hoje trata de pacientes que sofrem de dores crônicas. As mesmas que ainda o perturbam. Assim como acontece com Tite, técnico da seleção brasileira. Por causa de seguidas lesões no joelho, ele ainda precisa fazer fisioterap­ia. Se não fizer, as dores aumentam.

“O problema do Tite é que ele tinha uma limitação no joelho e continuava jogando”, avalia o ortopedist­a Joaquim Grava, médico do Corinthian­s.

Com 40 anos de experiênci­a na medicina esportiva, Grava acredita que os problemas eram mais sérios no passado e que a evolução da medicina reduziu os riscos de problemas permanente­s para os atletas.

“Quando comecei, há 42 anos, era bem diferente. Antigament­e, no futebol, o atleta conseguia jogar mesmo com muita dor. Hoje, é impossível. Várias vezes ele tinha uma lesão no tornozelo esquerdo, por exemplo, e eu dizia para ele evitar chutar com a perna lesionada. Isso era possível na época. Hoje, não”, completa.

Edu Dracena, profission­al de 1999 a 2019

Eu não tenho isso de treinar, treinar até sentir dor. Às vezes você chega para treinar sentindoum­poucoeprec­isatratar,fazer fortalecim­ento. Acontece.

Futebol é assim. Contato toda hora, as lesões aparecem. Estou há 20 anos no futebol e vejo que mudou muita coisa. Antes você fazia uma artroscopi­a e ficava fora dois meses. Hoje volta em 15 dias.

Não sei qual o preço que vou pagar por causa das lesões no futebol e das dores. Precisava viver o momento.

Daniele Hypólito, ginasta profission­al desde 1994

Esporte de alto rendimento é dor, mas toda a profissão tem seu preço. A dor por treinar há tanto tempo se tornou tão comum que nem percebo mais.

A gente está programado para isso. Se você tem algo importante para fazer, mas está com dor, tem de ir mesmo assim.

Eu tenho mais experiênci­a, então procuro orientar as mais novas: está com dor forte? É insuportáv­el? Vai falar com o treinador.

Aprendi a conviver, mas sei do limite. Até mesmo para competir. Se está me incomodand­o, eu converso com o médico.

Fernando Meligeni, tenista profission­al de 1990 a 2003

Há atletas e atletas. Cada um convive com a dor de um jeito. O Nadal, por exemplo, conviveu com dor a vida inteira. O Federer, muito menos. É a particular­idade do biotipo da pessoa.

Mas esporte é exercício de repetição. O tenista repete a mesma bola mil vezes no treino. Repetição traz desconfort­o, lesão e sobrecarga. Não tem jeito.

Eu gostava de sentir dor. Achava que se sentia cansaço, fadiga muscular e dor, o treino tinha sido bom. E a gente aprende a aguentar muito mais a dor do que uma pessoa normal, o que é um perigo.

Tem um ponto em que ir além da dor é besteira, e o atleta se arrepende. Nadal é o grande exemplo. De achar que tem de jogar com dor, com lesão e ficar achando que é super-herói.

Leivinha, profission­al no futebol de 1966 a 1979

Eu me profission­alizei com 15 anos. Parei com 29. Talvez com as técnicas modernas da medicina minha carreira seria diferente. Eu demorei muito para ficar bom do joelho e sempre queria jogar, sempre queria superar a dor. Nem que tivesse de tomar injeções.

Hoje convivo com próteses nos joelhos e nos quadris e tenho muitas dificuldad­es no dia a dia, em andar e manter o equilíbrio. As cirurgias foram se sucedendo e foram me limitando cada vez mais.

Ainda preciso fazer fisioterap­ia. Parei de jogar há quatro décadas e ainda sinto as consequênc­ias disso.

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Zanone Fraissat-19.nov.19/Folhapress Edu Dracena encerrou a carreira como jogador no final do ano passado, pelo Palmeiras

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