Esta é a morte do ar
Os anos passaram e os anos passaram. Os anos foram passando, e eu fui me tornando menos jovem primeiro e depois um pouco mais madura, e talvez tenha começado a envelhecer. Não muito, parece, minha aparência sempre foi retardatária em relação à minha idade, nisso sou afortunada e não tenho do que me queixar, ainda costumam calcular que tenho dez anos a menos. Vai ver que resisti a me distanciar dos anos que Tomás tinha quando desapareceu, como se o aumento da diferença fosse uma forma de abandono, ou de traição. A aceitação da sua provável, cada vez mais certa morte não foi imediata. Nunca é, nem mesmo quando se vê com os próprios olhos alguém morrer e se contempla o cadáver quieto e calado e o vela e o enterra como reza o figurino, passo a passo, e não cabe dúvida. Mesmo nesses casos, que são o habitual, ocorre um longuíssimo período em que a ausência é sentida como transitória, como algo que vai chegar ao fim mais cedo ou mais tarde. A gente tem a sensação —e é duradoura, às vezes de maneira doentia— de que o acabar de uma pessoa próxima e querida, que faz parte da nossa vida tanto quanto o ar, é uma espécie de alarme falso ou piada ou ficção, uma conjectura ou um produto da nossa imaginação mais medrosa, e por isso o sonho nos confunde com frequência: sonhamos com o defunto, vemos ele se mexer e até nos tocar e nos penetrar, ouvimos ele falar e rir, e quando acordamos acreditamos que está escondido e vai aparecer, que não pode ter se desvanecido para sempre, que foi a vigília que nos enganou. Que vai demorar mais ou menos, mas voltará. A razão não é muito capaz de aceitar a ideia da extinção nem o conceito de “para sempre”, que com tanta despreocupação manejamos na fala coloquial. “Para sempre” se refere ao futuro, em nosso entendimento corriqueiro, mas “sempre” na verdade inclui também o passado, e este nunca caduca nem se apaga totalmente. O que foi será, e o que esteve estará. O que passou passará e se repetirá. E se a razão tem dificuldade para admitir e digerir esses conceitos, que dirá o sentimento. A mão vai instintivamente para o lado da cama que o marido costumava ocupar quando estava em casa, e você acredita perceber o vulto que não está ali, sentir o roçar da perna e ouvir a respiração insone no travesseiro de quem não respira mais em lugar nenhum. Custa muito ao sentimento e à razão compreender que esse ser tão próximo tenha se tornado incoerentemente um desterrado do universo. Mas tudo chega, se dermos tempo, e a insistência colhe seus frutos, e de repente há um dia em que isso cessa, a ausência perde sua demorada sensação de provisoriedade e se impõe como definitiva e irreversível, e nem mesmo os sonhos nos confundem mais: ficam confinados na sua esfera de miragem e irrealidade, ao acordarmos são postos entre parênteses que já não têm serventia e que você pode ignorar, e ignora mesmo, e para a figura do morto também passam os anos que a tornam distante de nós e a esfumam; ela ao mesmo tempo envelhece e fica mais jovem, o primeiro porque sua morte vai se tornando antiga e já não é novidade nem é tanta calamidade, o segundo porque à medida que os vivos amadurecem, o morto parece mais ingênuo e mais pueril, ainda que só pela idade em que parou ou congelou, que foi deixado para trás com inesperada celeridade; e também porque ignora o que aconteceu depois. Chega um dia em que começamos a nos perguntar se algum dia existiu, se algum dia foi presente e não apenas passado, se algum dia se teve que recordá-lo porque estava ao alcance, estava aqui. (“Esta é a morte do ar”, agora morreu de verdade.)